Já neste espaço referi múltiplas vezes a falácia argumentativa em que habitualmente assenta o debate sobre a questão do processo de redistribuição da riqueza produzida, quando se confundem mecanismos fiscais com políticas de redistribuição de rendimento.
Mesmo correndo o risco de me repetir, não consigo evitar de voltar ao assunto quando me deparo com o chavão de «Tirar aos ricos para dar aos pobres», especialmente no sentido em que o fez José António Saraiva a propósito da questão de uma possível taxação dos lucros extraordinários.
Para o ex-director do Expresso e do Sol, agora reciclado conselheiro editorial do Nascer do Sol e do iNenarável (publicações recentemente adquiridas pelo fundo Alpac Capital, com ligações a capitais húngaros e encabeçado por Pedro Vargas David e Luís Santos, à Newsplex de Mário Ramires, que as adquirira em 2015 à Newshold, de Álvaro Sobrinho), «…o melhor caminho para o combate à pobreza não é a penalização dos ‘ricos’» até porque «… combate aos ‘ricos’ (ou seja, às empresas mais lucrativas) desincentiva o investimento e tem como consequência final a desaceleração do crescimento». Nesta linha de pensamento perfeitamente enquadrada na mais rigorosa visão neoliberal, não cabe outra perspectiva salvo a do famigerado princípio do “trickle-down” (sobre este conceito ver aqui no TORNADO o artigo «A utopia do “Trickle-Down”») que está na origem de um modelo de distribuição do rendimento que tem assegurado o processo de concentração da riqueza numa escassa minoria, em claro prejuízo da restante população condenada ao empobrecimento.
José António Saraiva insurge-se contra a ideia da aplicação de um imposto especial sobre os lucros extraordinários, sob o argumento que tal actuação se traduzirá no desincentivo do investimento e que só este (investimento privado) poderá gerar o «…aumento da produtividade e da produção…» indispensável ao crescimento da economia e ao aumento da riqueza. Neste encadeado de dogmas e demais axiomas neoliberais não podia faltar (e José António Saraiva não o esqueceu) a defesa do livre funcionamento do mercado e o anátema das intervenções estatais que o distorcem.
O que esqueceu em absoluto na sua diatribe é que, por desconhecimento ou assumida aleivosia, não existe a menor comparação possível entre um acréscimo transversal da carga fiscal (a mistificação em que José António Saraiva parece apostado em enredar os seus leitores) e a proposta de um imposto especial sobre os lucros extraordinários que resultam de uma conjuntura imprevista e que não atingem da mesma maneira, nem na mesma proporção, todos os sectores da economia. Como acérrimo defensor do livre funcionamento do mercado, José António Saraiva devia bem saber que até entre os mais importantes formuladores dos princípios do liberalismo económico, como Friedrich von Hayek, se defendia a intervenção governativa no sentido do restabelecimento do equilíbrio entre as forças da concorrência. E essa é precisamente a situação que agora se observa quando um ou outro sector da economia beneficia de uma conjuntura anormalmente favorável e, por essa via, realiza lucros anormais, que são aqueles que não resultam de um esforço da empresa, antes de fenómenos conjunturais absolutamente imprevisíveis.
No caso concreto e quando grande parte da inflação sentida deriva de um aumento descontrolado dos preços da energia – o aumento do preço do gás e do petróleo não é de todo causado por uma escassez de energia, nem por um aumento no seu custo de extracção, mas pelos efeitos especulativos de uma procura que se espera crescente e por os países produtores há muito cartelizarem a oferta, em termos de quantidades e preços – parece mais do que lógica a acumulação de lucros extraordinários, que em nada reflectem a excelência das equipas de gestão ou sequer o aumento da produtividade dos seus trabalhadores.
Esquecendo que têm abundado na História os momentos em que o reconhecimento de tempos extraordinários deu lugar a medidas extraordinárias, José António Saraiva está a perder a oportunidade de cavalgar uma onda de mudança quando mantém o atavismo de uma leitura centrada no confronto entre “mais Estado” ou “mais mercado”, resumindo as vantagens do seu querido modelo liberal a uma dinâmica onde se reconheça a maior eficácia da gestão privada (o seu deus ex-machina), agora que há cada vez mais dinheiro no sector privado mas menos produtivas se revelam as economias…
Isto é claro e evidente.
Tanto quanto malevolamente José António Saraiva procura esconder os lucros extraordinários do sector energético (aqueles que a Comissão Europeia propôs taxar extraordinariamente) sob o manto generalizado dos lucros elevados das empresas, para aludir candidamente à ideia que «…o Estado passaria a regular os lucros das empresas e a responsabilizar-se por eles», numa clara indirecta à responsabilização pública pelos prejuízos privados.
E atenção, que ao contrário do que escreve José António Saraiva, isto não é um perfeito absurdo; isto é uma realidade, como vimos há uns anos com os massivos resgates de que beneficiou o sector financeiro e até mais recentemente com a notícia que o governo alemão prepara nacionalizações no sector da energia.
E esta…