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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

Toda a magia do bailado com La Bayadère

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

… e ser recebido por um programa e um livrinho de poemas onde o meu nome e algumas das minhas palavras ficam ao lado de gente que admiro tanto.

Foi uma honra, aquela que me coube, ao estar no projeto A Companhia Nacional de Bailado e os Poetas e, sim, ao lado dos Poetas ficar eu, num nicho de quem adora a dança, seja ela a dos acesos corpos – ou a outra, das flamejantes palavras que são corpos deitados à fogueira das paixões.

Fui à estreia de La Bayadère. Vi-me no catálogo, já chega de mim. Porque mal o espetáculo começou – basta entrar na excelente sala do Camões e já é espetáculo – tudo o mais se dissipou e nem uma névoa ficou até ao último dos três atos em que o protagonista se adensa nas neblinas do ópio, perdendo a razão mas readquirindo pela ilusão um amor perdido.

Sim, desta vez trata-se de uma grande história de amor, de um bailado clássico, de um cânone conhecido e eficaz: a matriz da tragédia arrebatada – morrer por amor é incómodo porém engrandece a narrativa – que desta vez tem uma aura ocidental, diria quase Shakespeareana com outros Julieta e Romeu em perfeito encaixe oriental: Índia de marajás, príncipes e princesas, faquires, bailadeiras e brâmanes.

La Bayadère é um clássico. Dança-se como tal, com a fina delicadeza dos gestos mais rigorosos, aliás como os queremos desde o primeiro movimento, onde não há subversão a não ser a do rigor do corpo dominado. E lá fiquei eu às voltas com a memória, queridas mestras que tive no passado e que tanto amei (nunca apenas no palco, mas na vida), en dehors, croisé, ouvert, arabesques, passos com glissades, assemblées petits echappé, demi-plié e grand plié, battement jeté ou battement glissé, em adágio, isto é, lento, lento como a vida era nessas horas de que me recordo agora, com rostos que já partiram e que ficam na minha memória, figuras que nunca partirão, emoções, num desfile infinito de termos e gestos, de emoções confirmadas.

O ballet clássico e as danças modernas não conhecem fronteiras, são universais

As danças camponesas da europa deram-nos a matriz das danças de hoje, o que nos parece ser agora de elite não deixa de ser uma apropriação quase egoísta do que era bem popular. Mas para chegar aqui houve muito percurso e algum dele de grande qualidade estética, apesar de tudo .

La Bayadère é mais um daqueles espetáculos obrigatórios – e quem não for apreciador do género (de bailado, entenda-se) irá, também, encantar-se. Pela delicadeza com que Fernando Duarte fez sua, para nós, a coreografia de Marius Petipa e como José António Tenente soube vestir quem dança e representa. E pela música de Ludwig Minkus; deixa-nos a necessidade de vir a correr para casa e procurá-la para a revisitarmos até à exaustão.

No fosso de orquestra os virtuosos, sob a direção musical de Pedro Carneiro levam-nos a êxtases (alguns excessivos, como os dos espetadores que na estreia batiam palmas a meio de temas e atos, corrompendo a magia, do que se via e do que se ouvir, de quem interpretava o libreto de Sergei Khudekv ou de quem se libertava nele). Um espetáculo sensual, portanto. Assumam-se os sentidos.

Há que falar no desenho de luz de Paulo Graça e da mão invisível, aparentemente, de Bárbara Falcão Fernandes, assistente de cenografia (e que cenografia, a de José Capela! Um talentosíssimo desafio à imaginação de quem criou e de quem vê! E há que falar de António MV, na edição de imagem ; e de Madalena Salgueiro, Maria José Correia e dos alunos da Escola Secundária Artística António Arroio na execução de adereços de cabeça e maquilhagem especial. E os figurinos (executados no atelier da CNB sob orientação da Mestra Paula Marinho; Atelier de Costura CNB, Sector de Costura do TNSC, Ana Paula Simaria, Maria José Santos, Maria Manuel Garcia, Micaela Larisch-design, Lda. , na execução de guarda-roupa).

Depois há que aplaudir de pé o conjunto e os Artistas da Companhia Nacional de Bailado na interpretação e os da Orquestra de Câmara Portuguesa (Pedro Carneiro direção musical, repita-se. É tão bom vê-lo a dançar, também, marcando tons, enquanto rege…).

Falta sugerir que não percam esta história, com quase 140 anos e com libreto de Sergei Khudekov, que relata os amores, desencontros, traição e ciúmes de um rajá, um guerreiro, uma princesa, um faquir, um alto sacerdote hindu e uma bailadeira do templo (uma bayadère).

A Índia e as montanhas dos Himalaias são o cenário onde se desenrola a ação

Estreado em S. Petersburgo no final do século dezanove, pela mão de Marius Petipa, o bailado evoca uma Índia onde cabem véus de odaliscas, tutus clássicos, faquires, bugigangas, valsas europeias e todos os ingredientes que o esplendor da Rússia Imperial e o gosto pelo exótico da altura podiam imaginar à distância.

de Bruno Simão para a CNB

Os relatos de viagem pela Rota da Seda de Marco Polo que, por essa altura, tinham passado de histórias fantásticas a quase confirmações científicas, inflamavam ainda mais a imaginação e reproduziam em casa (e com o que havia à mão) as culturas para “além da Taprobana”. Um dos atos, o das Sombras, porventura o grande exemplo do classicismo académico da dança, é, apesar da sua simplicidade estrutural, de uma enorme dificuldade técnica para o corpo de baile feminino. Todo ele é deslizante, hipnótico, de beleza celestial – talvez não tenha sido por acaso que é precisamente com ele, que no guião, se atinge o Nirvana. É na consciência desta maravilhosa ambiguidade, que os criadores desta nova versão se propõem recriar La Bayadère – num tempo em que parece sabermos quase tudo, mas onde as narrativas sobre o “outro” continuam tão imaginadas, fascinantes e enigmáticas como talvez o tenham sido então.

Este artigo respeita o AO90

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