… esse conceito ambíguo, ou paradoxal – como diria o austríaco (naturalizado britânico) Karl Popper, o “filósofo da ciência”.
Aceito, à cabeça e antes de outras críticas, que pessoas como eu têm visões antagónicas da tolerância e que surpreendo quando faço o elogio da intolerância como peça elementar para a sobrevivência. Essas andanças prenderam-se exatamente com o Dia da Tolerância – e como diz o meu parceiro de luta Paulo Mendes Pinto: “só há um dia da Tolerância porque ela não está consagrada, nem assimilada no nosso dia a dia”.
Essa ideologia, com mais ou menos expressão, é a que pode gerar-se na didática, na pedagogia de uma cidadania do plural, do diferente, do intercultural, do transcorrido entre os cidadãos.
Explicando: é que assim, a tolerância, à moda romana, do acatamento, ou à moda de Voltaire que apela ao entendimento entre religiosos de sinais contrários e ao abandono do fatalismo religioso, ganha o novo estatuto de uma intolerância, isto é, da capacidade de não acatar o injusto, de procurar políticas identitárias, visando conduzir-se a uma coexistência tolerante de grupos com maneiras de viver “híbridas” e até mesmo cambiantes, divididos até ao infinito em subgrupos de género, opção, crença, o que significa, subgrupos fluídos, móveis, insistindo cada um deles em afirmar o seu modo específico de vida ou de cultura – porque somos incessante diversificação da nossa diversidade, isto é, não podemos tolerar que nos afectem no modo como sentimos os nossos traços de pertença comunitária, seja étnica ou ideológica, desde que seja o nosso inquestionável imperativo.
Relações sociais intensificadas
É por isso que o multicultural, painel de muitos pontos coloridos e luminosos, mosaico ao gosto bizantino e que só faz sentido quando visto a certa distância, funciona em pleno pelo intercultural. Para que isso seja possível, há que criar.
Criar condições para o relacionamento entre todos, e todos significa o espaço vivencial das diferenças.
Criar uma interacção duradoura, pois não chega interagir, há que tornar isso a norma.
Criar o respeito pelas identidades, pois quando o estranho se entranha e quando entranhamos o estranho a estranheza deixa de fazer sentido.
Quero dizer com isto que só aceitarei o meu vizinho quando o entender, quando partilhar com ele e dele uma vida comum com a minha e comum à minha, quando na cidade global formos o encontro local, o entendimento e sobretudo a aceitação das nossas diferenças. Quando o glocal se tornar o próprio intercultural. Não é o mesmo de ser o Outro, mas ser no Outro com o Outro. É o oposto da exclusão.
No contexto das “relações sociais intensificadas”, o multiculturalismo é uma cultura do espaço global, uma cultura dinâmica que se refaz com e através dos fluxos globalizantes. É a identificação do todo no reconhecimento das suas partes, modificando e reconstruindo as interações e colocando como desafio a conciliação de uma diversidade de costumes, concepções e valores, sem o perigo de excluir as formas diferentes de se manifestar. Exige que seja sucedido do intercultural, das partes em presença e a reconhecerem-se nas diferenças do seu semelhante que é, afinal, diferente e igual.
Multiculturalismo conservador
Há, obviamente, um multiculturalismo de cunho conservador, que busca a conciliação das diferenças com base no mito da harmonia (é aquele que nega que as relações entre as comunidades pós-modernas sejam marcadas por antagonismos e conflitos, reiterando os estereótipos e estigmas que recaem sobre as chamadas “minorias” (que às vezes tornam-se maiorias), e coloca-nos frente a uma concepção estática de cultura. Sob esta óptica, o multiculturalismo encoraja o crescimento da tolerância, mas, tolerar não significa aceitar a qualquer preço.
Repare-se como o gueto arruma as cores, as crenças, os gostos, numa quadrícula ao gosto de Mondrian, o pintor, uma quadrícula a régua e esquadro, mas que é o contrário do mosaico bizantino onde os rostos, com as nuances de tom, dentro do mesmo mosaico, conseguem ter expressão na composição do colectivo. Os guetos perseguidos são, ainda, os mais cómodos, porque se tornam itinerantes – e a territorialidade é que define e consolida.
E repare-se de igual modo nas sociedades humanas, na diversidade linguística, cultural, étnica, religiosa, sexual e como são essas as fontes da sua riqueza e, a um tempo, das suas tensões. A condição pós-moderna realçou os questionamentos sobre as diferenças, colocou o outro como alguém que, mesmo vivendo de forma diferente, pode/deve ser reconhecido como “nós”, e acentuou a flexibilidade como uma categoria política central para pensarmos sobre as mudanças que devemos proceder.
Uma sociedade tal como é vista pelos fundamentalistas, de Donald Trump a Marine Le Pen, passando por Geert Wilders, Nigel Farage, Matteo Salvini, Erdogan, Putin, Xi Jinpingou, Kim Jong-un ou a aprendiz de extremos à direita, a nossa Cristas, uma sociedade com tais protagonistas precisa de uma resposta muito rápida e intolerante: que consagre os valores humanos como Coisa intocável e central, como prioridade do entendimento e da vida em comum.