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João de Sousa

Terça-feira, Dezembro 24, 2024

Tomar posição é útil

CETA – Canada Comprehensive Economic and Trade Agreement – é um acordo internacional, entre a União Europeia e o Canadá, que funciona como uma reserva de direitos a favor das empresas globais que, através dele, passam a poder reclamar indemnizações aos estados que prejudicarem os seus negócios.

Os tribunais nacionais que, a partir do estado, têm respondido às disputas entre agentes económicos, deixam de poder intervir a este nível. Serão instâncias de arbitragem internacional que, em exclusividade, passam a decidir quem tem razão, se as empresas queixosas se os estados.

Assistimos a algo semelhante quando os estados, em particular os estados europeus, decidiram assumir o resgate do sistema bancário falido, a partir de 2010. Voluntariamente os estados nacionalizaram grande parte do malparado dos bancos – por sua vez, em grande parte resultante de corrupção – à custa das vidas das pessoas comuns.

O CETA pretende tornar permanente o mesmo esquema de resgate das empresas globais, à custa da vida das pessoas, através da privatização da justiça para este nível de litígios, em que o estado, ou melhor, o orçamento de estado, passa a ser o único réu admissível.

A velha luta de classes, que divide em esquerda e direita o espectro político, refinou nas últimas décadas. Além do crescimento de classes médias entre as duas classes em luta, os empresários e os trabalhadores, a globalização criou ordens sociais, isto é, como no tempo de domínio das aristocracias, há espaços e tempos inacessíveis a diferentes grupos sociais.

Quem pode andar de avião como quem anda de autocarro e tem qualificações suficientes para trabalhar em várias partes do mundo ao mesmo tempo, são relativamente poucas pessoas. Levam uma vida incompreensível para a maioria de nós. E, como o Cristiano Ronaldo, ganham imenso dinheiro que é uma parte relativamente pequena do dinheiro que dão a ganhar às organizações para quem trabalham. Estas vidas contrastam com as vidas miseráveis dos refugiados, cujo número não pára de aumentar, igualmente por causa da globalização que lhes cai em cima, como no Iraque ou na Síria, e em muitos outros lugares do mundo.

Para lá da divisão de classes, em empregadores e trabalhadores, com classes médias pelo meio, há uma tensão para dividir as sociedades em gente excelente e gente sem mérito. Não há, nisso, nenhuma lei da natureza, nenhuma lei económica. Há pura vontade política que conduz os estados, incluindo os sistemas judiciais, ao serviço da tal gente excelente, gente que a crise de 2008 revelou os méritos. Tanto na direcção dos estados como na direcção da banca, como na direcção dos tribunais. De resto, pessoas que trocam de lugares públicos por privados com escândalo público, mas sem condenações efectivas.

As respostas à crise financeira, que está a fazer dez anos, têm separado cada vez mais os eleitores dos políticos. A razão é a deriva do estado a favor da gente excelente, procurando entreter empregadores, trabalhadores e classes médias nos seus conflitos de classe, enquanto esmaga sem piedade a gente sem méritos, a nível internacional, mas também a nível nacional e local. Nos EUA, onde estas políticas são inventadas e postas em prática primeiro, discute-se com ardor nunca antes visto, a verdade de Trump – a que reconhece expressamente a existência de gente como ele e os amigos, excelentes, e os incapazes que merecem ser despedidos, humilhados e abandonados – e a necessidade dos jovens, em torno de Bernie Senders, de organizarem uma sociedade diferente (é isso que socialismo quer dizer nos EUA, ao contrário do que acontece na Europa), por exemplo, rompendo com as políticas de dívida impostas pelas universidades, antes mesmo das pessoas começarem a trabalhar.

O caso do CETA parece, e é, mais um acordo jurídico entre magnatas que tomaram os estados por sua conta para organizarem redes de negócios globais, acima da capacidade de intervenção das lutas de classe, sequestradas a nível nacional. Cujas consequências todos vamos sofrer – por exemplo, a nível da (falta de) segurança alimentar por ausência de etiquetagem ou por simples vigarices – em especial os mais vulneráveis.

Nesse caso, pergunta, e bem, o leitor, nada podemos fazer? Em certo sentido é verdade: pouco podemos fazer. Como se sabe, nem os deputados do parlamento europeu têm direito a intervir no desenho de tais tipos de tratados, apesar de votarem sobre o assunto, para comprometer os estados que representam. A União Europeia exige unanimidade para subscrição de tratados deste tipo. E consegue que nenhum estado tome posição de bloqueio, como se viu no caso do CETA, bloqueado durante algumas semanas pela Valónia (Bélgica). Os estados, portanto, de alguma forma, têm estado comprometidos com este tipo de práticas, alheias ao comum dos eleitores. O que explica a importância da reclamar junto dos deputados, cuja função legal é a representação dos eleitores, que votem de acordo com o que sabem ser os interesses dos seus representados.

O pouco que podemos fazer contra este estado de coisas, devemos fazê-lo: antes de mais reconhecer como imperativo pessoal não aceitar como boa, moral ou politicamente, a divisão da sociedade em pessoas excelentes (que esmagam os outros) e pessoas sem mérito (que todos podemos esmagar a bel prazer). Ideia que tem favorecido Brexit, Trump, os racismos institucional e político dominantes em vários países europeus, com destaque para a França e a Alemanha. Depois, usar os poucos meios que existem à nossa disposição para procurar impedir a legalização das práticas de diferenciação social que já estão em curso, em particular através da privatização da justiça, que deixará ainda menos protegidos os desvalidos. No caso do CETA, serão vítimas óbvias os contribuintes e, sobretudo, os que estão dependentes dos serviços públicos por não poderem pagar seguros de saúde ou custos de educação, serviços cada vez mais descapitalizados.direitos humanos, o direito internacional é um faz de conta. Quando se trata de reconhecer direitos humanos às empresas, seguindo aquilo que acontece nos EUA, em que as empresas adquiriram os mesmos direitos das pessoas, como se nascessem, sofressem e morressem como nós, o empenho dos estados é completamente diferente. Para estender este direito das empresas, ao menos das grandes empresas globais, à cena internacional, com o recurso a juízes privados (os juízes com formações comuns dificilmente aceitariam tal ideia), os estados empenham-se de tal modo que o fazem à margem das instituições e dos eleitores. Neste aspecto, ainda há alguma capacidade de influência dos eleitores.

Pessoalmente, apoio o activismo de difusão de informação sobre os perigos do CETA e a organização de discussões sobre o tema. Faço-o, neste caso, para apoiar as iniciativas da Plataforma que organiza esse activismo. Recomendo aos leitores que façam o mesmo. É pouco mas é necessário e útil.

António Pedro Dores, Professor Auxiliar com Agregação do Departamento de Sociologia e do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES/ISCTE-IUL)

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