Encerra esta série de matérias, publicadas pelo Portal CTB, sobre o trabalho infantil no país, esta entrevista com Valdete Souto Severo, juíza do Trabalho, professora universitária e escritora.
Valdete tem sido muito presente no site da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) concedendo entrevistas ou participando com depoimentos em reportagens sobre as transformações do mundo do trabalho e a necessidade de haver respeito aos direitos trabalhistas e às normas constitucionais para uma evolução civilizacional do Brasil.
Nesta entrevista, ela fala sobre a importância do trabalho decente para as famílias terem renda suficiente para não terem necessidade de inserir suas filhas e filhos precocemente no trabalho.
Importante ler todas as matérias para compreender de modo mais abrangente toda a dimensão das graves consequências da exploração do trabalho infantil no desenvolvimento das crianças e adolescentes.
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Atualmente ela é colunista do Brasil de Fato no Rio Grande do Sul, com republicação no Portal CTB, no site Rádio Peão Brasil e no Tornado, jornal digital português.
Para Valdete, “é necessário reconhecer a gravidade de uma situação estrutural como a nossa em que as crianças são jogadas no mundo do trabalho precocemente com todas as consequências daí decorrentes para a formação da mente, do corpo, dos músculos, dos ossos, para uma alimentação adequada, para a questão emocional. A parte lúdica de brincar na infância faz muita diferença para que a pessoa se torne um adulto saudável. É tudo isso que está sendo tirado de nossas crianças e adolescentes”.
Vamos à entrevista na íntegra:
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, 1,8 milhão de pessoas de 5 a 17 anos trabalhavam no Brasil. Levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), verificou que na pandemia o trabalho infantil cresceu 26%, o que ultrapassa os 2,2 milhões de crianças e adolescente nessa situação. Quais as consequências disso para o futuro da nação?
Valdete Souto Severo: Drásticas. Porque sabemos muito bem que uma das grandes questões para a existência do trabalho infantil é a miséria e nos últimos anos aumentou de forma muito significativa o número de miseráveis. Claro que isso ocorre por conta da precarização das condições de trabalho e pela falta de emprego.
Em 2019, tivemos pela primeira vez, uma população economicamente ativa com maioria de pessoas desocupadas e no Brasil de 2020, o número de pessoas na extrema pobreza, ultrapassa os 19 milhões. Isso sem falar nas pessoas que estão em situação de pobreza, ou seja, ainda têm alguma refeição diária.
É evidente que as crianças dessas famílias, acabam sendo forçadas a trabalhar, saem da escola em função da necessidade de sobrevivência e aí o futuro todo fica comprometido. Por isso, temos que pensar também que ao lado do empobrecimento da população, há um completo abandono da escola pública. Não existe investimentos na educação, ao contrário, a Emenda Constitucional 95 congelou os investimentos na educação e na saúde.
O que vemos é que não há sequer escolha para as crianças dessa população que está passando necessidade. Não há, portanto, futuro. Uma nação que não cuida de suas crianças não tem futuro. Por isso, é tão grave um quadro desolador como o atual.
Como a Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho (MPT) atuam no combate ao trabalho infantil?
A Justiça do Trabalho e o MPT desenvolvem programas, com bons resultados, contra o trabalho infantil. Desenvolvem campanhas importantes para o esclarecimento da sociedade sobre a necessidade de se acabar com essa prática. Por esses dias mesmo houve uma ação civil pública, a pedido do MPT, para encaminharmos uma boa parte do valor de indenização para iniciativas de combate ao trabalho infantil.
Mas precisamos pensar que qualquer iniciativa da justiça ou dos setores institucionalizados da sociedade são paliativos. O que quero dizer com isso, é que essas ações atingem o efeito já dado, parte do pressuposto de que o trabalho infantil já existe. Mas o que precisamos é de prevenção, de evitar que as crianças entrem na vida laboral precocemente. O lugar de criança, como vi em uma campanha recente, é na infância. É viver sua infância. Criança deve estar na escola e não trabalhando.
Por mais que essas iniciativas deem frutos, elas sempre estarão lidando com um quadro, repito, onde estruturalmente nossas crianças, em grande parte, não têm opção. Precisa sobreviver e acabam entrando no mundo do trabalho. Na maioria das vezes em trabalhos informais, até mesmo ligados a situações ilícitas como o tráfico de drogas , por exemplo. Por pura ausência do Estado com políticas públicas para essa população.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) declarou 2021 como o Ano Internacional pela Eliminação do Trabalho Infantil. Isso ajuda a mudar a mentalidade sobre essa exploração?
Em primeiro lugar precisamos pensar que é até curioso 2021 ser o Ano Internacional pela Eliminação do Trabalho Infantil, quando estamos tão distantes dessa realidade não só no Brasil, mas na maioria dos países de capitalismo periférico, estamos muito longe de atingir uma realidade sem a exploração do trabalho infantil.
Mesmo que seja louvável que se pontue 2021 como esse ano para que as energias se voltem para medidas de erradicação, não existe mistério. Na verdade, o que erradica o trabalho infantil são condições dignas de saúde e trabalho para todos os adultos. Numa sociedade capitalista, senão quisermos pensar numa transformação mais profunda, o que erradica o trabalho infantil é que as famílias tenham renda suficiente para as crianças não precisarem trabalhar. Simples assim. É preciso de escola e é preciso de emprego com salário decente para os adultos. Aí as crianças não trabalharão.
A legislação proíbe o trabalho infantil, mas a realidade é outra. O que deve ser feito para a lei ser respeitada ou até melhorada?
A legislação que proíbe o trabalho infantil tem brechas como sabemos. Existem, por exemplo, situações em que a justiça comum acaba autorizando o trabalho de crianças em peças de teatro, em novelas ou em algumas atividades como a agricultura familiar. Com argumentos dos mais variados. Dizem que a atividade é lúdica, que a carreira realmente começa cedo, que a criança precisa ajudar no sustento da família. Argumento infelizmente muito comum. Um argumento que na verdade justifica o injustificável. Porque se a criança precisa trabalhar para ajudar no sustento da família é porque tem alguma coisa muito errada com o trabalho ou a ausência de trabalho desse pai ou dessa mãe, enfim, de quem deve estar garantindo a subsistência dessa criança, evitando que ela precise trabalhar para complementar a renda familiar.
Significa que temos leis suficientes?
Me parece que não se trata de uma questão de legislação. Tudo bem, poderíamos mudar de acordo de acordo com a Constituição. Nela não há nenhuma brecha. Se analisarmos as legislações que temos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exemplo, à luz da Constituição da República, não há como autorizar nenhum tipo de trabalho para pessoas com menos de 14 anos. Mas sabemos que essa não é a realidade.
O que me parece não é a lei, a falta de leis, não se trata de melhorar as leis. O problema é cultural, estrutural e econômico. Como eu disse antes, é muito fácil, entre aspas, erradicar o trabalho infantil. Apenas é necessário que todos os adultos tenham trabalho decente e as crianças não precisarão trabalhar. É necessário que todas as crianças tenham escola com qualidade social.
Dessa maneira, fechamos o ciclo. Os pais trabalham e recebem salário decente e as crianças estudam. Num país como o nosso, com desemprego estrutural e com quase 30% da população subutilizada, a partir dos índices oficiais do IBGE, é evidente que não tem como erradicar o trabalho infantil. Porque não há como exigir das famílias miseráveis que impeçam suas crianças de trabalhar. Essas crianças precisam se alimentar, precisam sobreviver.
Como essa realidade pode ser mudada?
É um quadro muito trágico. Não se justifica com a fala, já feita muitas vezes, pelo presidente da República de que é preciso reduzir a idade para o trabalho. Ao contrário, é necessário reconhecer a gravidade de uma situação estrutural como a nossa em que as crianças são jogadas no mundo do trabalho precocemente com todas as consequências daí decorrentes para a formação da mente, do corpo, dos músculos, dos ossos, para uma alimentação adequada, para a questão emocional. A parte lúdica de brincar na infância faz muita diferença para que a pessoa se torne um adulto saudável. É tudo isso que está sendo tirado das nossas crianças e adolescentes.
O que vamos conseguir com isso? Uma sociedade de pessoas doentes física e mentalmente e, sem dúvida nenhuma, com suas vidas abreviadas. Como acontecia no século 18.
Uma das razões pelas quais a classe trabalhadora lutou tanto para que fossem aprovadas leis que impedissem o trabalho de crianças. Não podemos esquecer que tanto na Europa quanto no Brasil já houve tempo em que era, por lei, autorizado o trabalho de crianças a partir dos 5 anos de idade.
O resultado disso foi o adoecimento e a morte precoce dos adultos, além de recursos muito maiores à Previdência Social em função de acidentes do trabalho e das doenças que acabam sendo muito mais graves sobre esses organismos porque o trabalho começa muito cedo. Foi em razão disso, que o Estado cedeu e proibiu o trabalho infantil para pessoas com menos de 14 anos e de 14 a 16 anos na condição de aprendiz, o que já é uma idade que podemos discutir se já não é muito baixa, se não deveríamos proibir o trabalho até os 16 anos.
Temos problemas de duas ordens. Em primeiro lugar, essa lei acaba sendo excepcionada, abrindo brechas para as autorizações das quais falei antes. Em segundo lugar, existe uma parcela importante da população para quem essa lei não se aplica. Assim, as crianças estão nos sinais vendendo coisas, estão limpando casas dos outros em troca de remuneração, estão na roça, enfim estão realizando trabalho muitas vezes insalubres, trabalho que provoca danos efetivos à saúde desses seres humanos.
Texto em português do Brasil