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Domingo, Novembro 3, 2024

Trabalho infantil reforça a lógica perversa do capital, afirma juíza

Marcos Aurélio Ruy, em São Paulo
Marcos Aurélio Ruy, em São Paulo
Jornalista, assessor do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo

O presidente Jair Bolsonaro afirmou o “trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”. Citou o próprio exemplo ao dizer que começou na trabalhar com 8 anos e que isso lhe fez bem. Para a juíza do Trabalho Valdete Severo, “o incentivo ao trabalho infantil é a antítese do que apregoa a legislação. O pior é que o pressuposto dessa defesa do trabalho infantil é a ideia de que existem tipos diferentes de seres humanos”.

A magistrada, atualmente presidenta da Associação dos Juízes pela Democracia, afirma ainda que “o capital nunca se opôs ao trabalho infantil. A limitação da idade para o trabalho e para a assunção de responsabilidade penal foram conquistas duramente arrancadas do sistema”.

Em sua formação, Valdete tem ainda os títulos de doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), mestra em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social, professora, coordenadora e diretora da Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul.

Acompanhe a entrevista na íntegra

Marcos Aurélio Ruy: Como a Justiça do Trabalho interpreta quando o presidente da República diz que não vê problemas em crianças trabalharem?

Valdete Severo: Pois bem, a Justiça do Trabalho tem se engajado em programas contra o trabalho infantil, atuando inclusive em conjunto com o Ministério Publico do Trabalho para tentar coibir esse tipo de exploração. Temos teses aprovadas em encontros nacionais de juízes para trazer a questão da autorização do trabalho infantil por alvará judicial para a competência da Justiça do Trabalho, justamente para coibi-lo. Então, não posso responder pela instituição, mas posso afirmar que o incentivo ao trabalho infantil é a antítese do que apregoa a legislação trabalhista.

Em geral, quem defende o trabalho infantil, o faz para as famílias pobres. Como a senhora vê isso?

O pior é que o pressuposto dessa defesa (declarada ou disfarçada) do trabalho infantil é a ideia de que existem tipos diferentes de seres humanos. Os filhos da classe média ou alta, que devem estudar e se preparar para assumir funções públicas e empreendimentos privados, não se confundem com os filhos da pobreza, que precisam trabalhar desde cedo para auxiliar no sustento da família. É apenas para essas crianças e adolescentes que o discurso do mal menor, representado pela falácia de que é melhor trabalhar do que estar nas ruas, como se a única opção válida fosse entre a rua (as drogas, o abandono) e o ambiente laboral.

Valdete Severo

Juiza do trabalho, preside a Associação dos Juízes pela Democracia

 

Essa explanação fere a Constituição? Foi irresponsabilidade?

Certamente fere, a Constituição de 1988 estabelece claramente o primado dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a ponto de determinar – em seu artigo 170 – que a própria ordem econômica deve se sujeitar aos “ditames da justiça social”. O art. 7º, inciso XXXIII, estabelece como direito fundamental a proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos. Essa é a perspectiva sob a qual a relação social entre trabalho e capital é concebida na ótica constitucional.

Então a Justiça do Trabalho repudia veementemente o trabalho infantil?

Ao contrário do que ocorreu no passado, hoje a linguagem jurídica constitucional repudia o trabalho infantil sob qualquer modalidade. A conclusão necessária, portanto, é a de que o Direito, enquanto linguagem jurídica do capital, avançou em sentido oposto àquele pretendido pelo discurso de Bolsonaro. Qualquer tentativa de incentivar ou permitir o trabalho infantil implica retrocesso social. Esse discurso constitucional, mesmo naquilo que possui de retórico ou utópico, deve constituir o ponto de partida para a aplicação e a compreensão do Direito do Trabalho. A luta pelo trabalho decente, pela melhoria das condições sociais, por uma sociedade minimamente melhor, passa pela rejeição plena e radical de qualquer forma de trabalho infantil. Trata-se, portanto, de uma escolha social: não viver em uma sociedade de seres humanos que não tenham direito à infância. Uma conquista histórica que discursos como esse vêm comprometendo.

De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 150 milhões de crianças e adolescentes são exploradas pelo trabalho infantil. No Brasil, são quase 3 milhões. Quando o dirigente do país, que deveria atuar para combater essa prática a defende, a tendência é regressão?

Regressão a uma lógica que já havíamos de certo modo superado, pelo menos como discurso, mas que não chega a espantar. Historicamente, o capital nunca se opôs ao trabalho infantil. A limitação da idade para o trabalho e para a assunção de responsabilidade penal foram conquistas duramente arrancadas do sistema. Exemplo disso é o fato de que o trabalho a partir dos 11 anos em regime de 56 horas semanais foi defendido por Jorge Street, o primeiro diretor do Departamento Nacional do Trabalho no Brasil, quando da criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1931. Em sua manifestação, Street referia que “seus trabalhadores”, sujeitos a jornadas de 10 horas, saíam do trabalho “marchando firmes e bem dispostos”, nunca se queixavam desse regime de trabalho, nem participaram da greve geral daquele ano. Acrescentou que os trabalhadores “aceitaram com prazer o trabalho em horas suplementares, que, naturalmente, lhes proporcionava um excedente de ganho”.

Ele também defendeu o trabalho infantil?

Especificamente sobre a exploração de crianças, Street observou que retirá-las do trabalho significaria deixá-las “ao abandono, entregues a si mesmas, nas ruas, à disposição de todas as seduções e de todos os vícios”. Admitia empregar cerca de 300 crianças entre 11 e 15 anos, em regime de 10 horas de trabalho por dia, muitas vezes a pedido dos pais, para que pudessem complementar a renda ou evitar o abandono. Segundo ele, não havia problema pois as crianças podiam “até fazer lanche durante o trabalho” e mesmo sentar para descansar de vez em quando. Ele ainda descreve que: “Ao fim da jornada, as crianças saíam das fábricas em revoada alegre e gritante, correndo e brincando”. Street chegou a afirmar: “Defendo, ainda, que a criança brasileira é mais precoce. Esse fato, somado à ausência de incentivo para ir à escola, torna necessária autorização do trabalho a partir dos 11 anos. As crianças suportam perfeitamente bem, por exemplo, 5 horas de trabalho seguido. A partir dos 14 anos, o trabalhador já deve ser considerado adulto”.

Parece a tese do Bolsonaro.

E olha que Jorge Street era considerado um industrial com muita consciência social, porque instituiu benefícios para seus quase 4 mil operários e fez uma vila operária para que residissem, na qual havia intensa prática religiosa e disciplina de caserna, com toque de recolher. A Vila Maria Zélia foi, inclusive, transformada em presídio durante a revolta militar de 1935. Do mesmo modo, o Centro Industrial do Brasil apresentou manifesto de repúdio ao Código de Menores instituído em 1929, especialmente na parte em que limitava a jornada e determinava mínimas condições de higiene no ambiente laboral, sob o idêntico argumento de que trabalhar é melhor do que permanecer na rua. Tudo isso está descrito em um livro chamado “A Classe Operária no Brasil. 1889-1930. Documentos. V. II. Condições de vida e de trabalho, relações com os empresários e o Estado”.

Estamos voltando a esse tempo?

Esse pensamento vem sendo superado desde o século XVIII, através do reconhecimento, inclusive por parte de uma farta doutrina de proteção à infância e à juventude, de que é preciso impor limites à fúria predatória do capital.

Como a Justiça do Trabalho pode atuar no combate ao trabalho infantil?

Dificilmente a Justiça do Trabalho consegue fazer diferença na prevenção, pois sua atuação via de regra ocorre quando o trabalho infantil já foi explorado. A importância dos órgãos de prevenção, desmantelados pelo atual governo, é essencial. Ainda assim, há um espaço importante para atuação da Justiça do Trabalho, que vem sendo ocupado. O CSJT tem um programa de combate ao trabalho infantil e estímulo à aprendizagem, com um portal em que veicula notícias, informações técnicas, links, vídeos e normas atinentes ao combate à exploração das crianças no mundo do trabalho, registra eventos e abre espaço para denúncias de violência ou exploração contra a criança (www.tst.jus.br/web/trabalho-infantil/apresentacao). No combate efetivo, existem decisões exemplares de condenação por tal prática. Em 2018, a 1ª turma do TST negou provimento a agravo de uma construtora contra a condenação, com o município de Porto Velho (RO), ao pagamento de indenização de R$ 1 milhão em danos morais coletivos por permitir a atuação de crianças e adolescentes como catadores num lixão situado à margem de uma das rodovias de acesso à capital de Rondônia.

Que futuro pode ter um país em que as suas crianças estão fora da escola para ajudar as famílias a sobreviverem?

A Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) define o trabalho infantil como uma das piores formas de trabalho forçado ainda presente na contemporaneidade. Aliás, a OIT preocupa-se de forma prioritária com a erradicação do trabalho infantil, mantendo um Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC), implementado em 1992, do qual o Brasil faz parte. Na Convenção 138 da OIT, ratificada pelo Brasil, está estabelecido que todos os países membros devem atuar pela “abolição efetiva do trabalho de crianças” e pela elevação progressiva da idade mínima de admissão ao emprego ou ao trabalho”.

Essas são declarações consideradas fundamentais pela OIT, desde 1998, quando declarou que todos os Estados Membros, “ainda que não tenham ratificado as convenções aludidas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções, isto é: (…) a abolição efetiva do trabalho infantil”. Portanto, é mesmo evidente que não se trata de escolha entre estar na rua ou trabalhar, nem é possível pensar esse tema a partir da necessidade de complementação da renda familiar.

Como responder à essa necessidade real da grande número de lares brasileiros?

Se essa necessidade existe, e sabemos que ela é uma realidade para um número significativo de famílias brasileiras, é porque o que está errado é a opção. A escolha, para uma criança, deve ser entre estudar e trabalhar. E essa é uma escolha fácil: lugar de criança é na escola. Um país que aposta na exploração da forca de trabalho de suas crianças, em vez de garantir-lhes uma infância saudável, com educação de qualidade e tempo de ócio, é destinada ao completo fracasso.

Lembrando que Brasil já foi definido pela OIT como exemplo no combate ao trabalho infantil nos governos de Lula e Dilma, mas a partir de 2016 as políticas de combate ao trabalho infantil se enfraqueceram. As perspectivas sob o governo Bolsonaro são as piores possíveis?

O desmantelamento do Ministério do Trabalho e da estrutura que viabilizava a fiscalização, a prevenção e o combate a trabalho infantil ou em condições análogas a de escravo torna mais fácil a exploração de crianças e de escravizados. O orçamento do Ministério do Trabalho para o combate ao trabalho infantil passou de R$ 1,2 milhão para pouco mais de R$ 300 mil, de 2010 a 2018. O corte de recursos para a Secretaria de Inspeção do Ministério do Trabalho chegou a 70%, em 2017. O número de auditores fiscais também diminuiu nos últimos anos, tendo passado de 3.059 para 2.303, no período de 2010 a 2018, conforme dados do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait).

A falta de programas de combate à crise e criação de empregos fazem tudo piorar?

O Brasil já atingiu o número de 13,1 milhões de pessoas desempregadas e 27,9 milhões de pessoas subutilizadas, eufemismo para caracterizar o conjunto de pessoas que estão desocupadas, trabalham menos de 40 horas semanais ou ” estão disponíveis para trabalhar, mas não conseguem procurar emprego por motivos diversos”. Esse é o maior índice desde 2012. Apenas no primeiro trimestre de 2019, mais de 1,2 milhão de pessoas entraram para a população desocupada, na comparação com o último trimestre de 2018. Se considerarmos esses números, é certo que há incentivo a qualquer forma precarizada de trabalho, notadamente do trabalho infantil. De acordo com a Rede Peteca, organização de combate ao trabalho infantil, as investigações abertas pelo MPT em São Paulo passaram de 217 em 2012 para 79 em 2018 (até setembro). As ações realizadas pelo Ministério do Trabalho em São Paulo também tiveram queda no período de 2010 a 2017, de 477 ações fiscais passaram para 363. Nos anos de 2012 a 2016 a quantidade de fiscalizações era superior, próximas a 700.

Antes ainda de Bolsonaro, a reforma trabalhista favorece a exploração do trabalho infantil?

Qualquer regra que precarize condições de trabalho facilita a exploração de crianças. Faz muito pouco tempo que proibimos o trabalho infantil e iniciamos um combate efetivo a essa prática. Basta lembrar que um relatório oficial divulgado em 1901 apontava que um grande número de crianças de 5 a 11 anos trabalhava durante o dia e à noite nas indústrias brasileiras.

O Brasil tem evoluído no combate à exploração do trabalho infantil. O golpe de Estado de 2016 acarreta retrocesso nessa área também?

Já foram lançados três Planos Nacionais de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, mas não há dúvida de que isso depende de investimento, que a Emenda Constitucional (EC) 95 impede de ser feito. A reforma trabalhista (aprovada em 2017) torna esse quadro ainda pior sobretudo quando incentiva a ampliação da prática de terceirização.

Isso significa que a precarização das relações de trabalho afetam severamente as crianças e jovens?

No último Relatório Mundial sobre o Trabalho Infantil, publicado pela OIT em 2015, há referência à direta ligação entre pobreza e trabalho infantil. A precarização das condições de vida e dos vínculos de trabalho é determinante, portanto, para impedir que a retórica de proteção se torne realidade. No mesmo relatório, consta: “O desemprego involuntário também está associado ao trabalho infantil. Dados da Argentina, Brasil, Tanzânia e Togo sugerem que, na ausência de proteção no desemprego, os agregados familiares em que um adulto perca o seu emprego podem ser forçados a depender do trabalho infantil para obterem algum rendimento. A implicação óbvia é que a proteção no desemprego tem um papel a desempenhar nos esforços de combate ao trabalho infantil, proporcionando a substituição de, pelo menos, parte do rendimento, permitindo que o beneficiário mantenha um certo padrão de vida até encontrar novo emprego e eliminando, assim, a necessidade de depender do rendimento do trabalho das crianças. No entanto, até a data, não se realizou nenhum estudo que investigasse as relações diretas entre os planos de proteção no desemprego ou outros programas de apoio ao rendimento instituído para os desempregados e o trabalho infantil”.

A dificuldade da fiscalização e o abrandamento das punições facilitam a violação das leis?

A chamada “costura doméstica”, realizada em ambientes clandestinos, tem sido uma das atividades que mais propicia a ocorrência de trabalho infantil. É parte da chamada “terceirização externa”, que ao permitir e estimular a exploração de força de trabalho fora do ambiente da fábrica, viabiliza essa triste realidade. Em um artigo no qual trata a questão do trabalho infantil no setor calçadista da cidade de Franca, de 2006, a autora Elisiane Sartori observa que em 1989, “o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçados de Franca (conhecido como “Sindicato dos Sapateiros”) iniciou o monitoramento nas indústrias e, percebendo o aumento da utilização de mão-de-obra infantil, fez uma tentativa, fracassada, de chamar a sociedade para discutir o problema, o que os levou a buscar parcerias com agentes externos à cidade, com intuito de diagnosticar a demanda, a necessidade e os malefícios dessa incorporação precoce. Dessa maneira, foi realizado um estudo de caso preliminar – “Estudo de Caso de Crianças Trabalhadoras no Setor de Calçados de Franca” –, cujo resultado constatou uma grande parcela das crianças e dos adolescentes trabalhadores da “banca de pesponto” sem registro na Carteira Profissional”.

Um estudo do Instituto Observatório Social revelou que a Faber-Castell, a Basf e a ICI Paints estavam envolvidas na cadeia de exploração de mão-de-obra infantil, porque compram talco das empresas Minas Talco e Minas Serpentinito, que utilizam crianças na mineração da pedra-sabão, na Mata dos Palmitos, em Ouro Preto (MG). O estudo descobriu crianças a partir dos cinco anos de idade trabalhando nas jazidas, carregando pedras de até 20 quilos e esculpindo pedra-sabão: “cortam, talham e lixam o minério”.

Não há dúvida, portanto, de que precarizar implica incentivar a exploração da força de trabalho de crianças.


Texto em português do Brasil


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