Poema inédito de Beatriz Aquino
Travessia
Avante.
Palmilhemos as trilhas de uma terra apocalíptica.
Enviemos notícias do soturno caminho.
Façamos a arqueologia de nossos passos. Do início dos tempos, até os dias de hoje.
O vulcão acordou.
A Terra está em plena erupção.
É momento de travessia.
E o deserto agora é outro.
Uma sede que mata por dentro.
Mãos invisíveis nos asfixiam.
Olhos suspeitos nas ruas. Rostos camuflados. Bocas sem expressão.
Sim. A indústria pasteurizou o homem. Máscaras, luvas, látex, álcool. Perdemos o nome, o cheiro, a voz, o tato. Somos estatísticas pandêmicas.
Nossos idosos se tornaram fósseis vivos. Ilhados, distantes, temerosos.
E nas ruas, a rebeldia burra. A alienação das aglomerações, a euforia insana das multidões.
Negação é medo subterrâneo.
O comércio quer vender e por isso protesta.
Tempos de guerra.
Estoque de suprimentos, barricadas, alforjes.
Western urbano.
Nas redes, uma profusão de contradições. Relatos sensíveis, o fazer de conta que isso não está acontecendo, a manutenção de uma alienada ordem. Precisamos continuar vendendo. Sapatos, conceitos, bocas e peitos. É preciso lucrar antes que a economia colapse. É preciso ser
célebre antes que o mundo acabe. É preciso matar o homem antes que o homem se mate.
Todo mundo quer ser notório. Mesmo que post morten. Todos querem arranhar a pele dessa terra e nela gravar o seu nome. Que sede, que fome, que coisa…
Os leões não constroem pirâmides com as carcaças de suas presas. O homem sim.
Ele é o único que necessita do pódio. Mesmo que seja para gritar de terror ao perceber que além dele e de seu trono imaginário, não sobrou mais nada.Sim. A Terra está em plena erupção.
Erramos. E erramos feio. Precisamos admitir.
Pintamos a nossa própria Guernica. Estamos presos em um mar de lama, tinta e desespero.
E é de lá que nos perguntamos roucos e aflitos:Dormia o vulcão? Ou dormíamos nós?
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