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Domingo, Julho 28, 2024

Trezentos e Vinte

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

As notícias dão conta de que trezentos e vinte militantes do PS estão sob processo e em risco de expulsão por terem participado em listas de movimentos não partidários nas eleições autárquicas. A questão tem gerado alguma polémica no interior do próprio partido. E é caso para isso, tratando-se de um partido que tem como variável fundamental da sua matriz a ideia de liberdade. Mas há os Estatutos, o artigo 14. Claro, a violação das regras de uma organização a que se pertence tem de ter consequências. É normal. E neste caso houve. Militantes participaram em listas cívicas que se apresentaram nas eleições autárquicas em concorrência com o PS. E isto não deveria acontecer. Uma organização que se preze deve agir em consequência.

Mas, tratando-se de uma organização política e, ainda por cima, com as características do PS, a questão não é linear.

Endogamia

Em primeiro lugar, mais do que com sanções, o PS deveria preocupar-se com as causas desta “deserção”, ou melhor, desta suspensão das suas fileiras no combate autárquico. E não só. Também de outras. É que não se trata só de trezentos e vinte, que já são muitos, porque a maioria saiu mesmo do Partido, muitas vezes com as lágrimas nos olhos. Conheço alguns com quem travei batalhas. E com dezenas de anos de militância activa, de trabalho e de luta. A esses não são aplicáveis os Estatutos, simplesmente porque já lá não estão. Foram silenciosamente embora, mas levando consigo os valores por que sempre lutaram. Acabaram em movimentos cívicos ou então politicamente desmotivados.

Na verdade, há duas razões de fundo que explicam este transvase de militantes para a área da cidadania não partidariamente comprometida. A primeira reside na insuficiência ou inadequação dos mecanismos de selecção de dirigentes e de candidatos às instituições políticas de natureza electiva. O debate em torno das primárias, sobretudo de primárias abertas, tem vindo a ser suscitado por isso mesmo: necessidade de melhorar o sistema de selecção e de romper com o velho sistema. Ou seja, o domínio das estruturas dos partidos através de “bolsas de quotas” tem-se revelado politicamente desastroso porque permite a ascensão a cargos de alta responsabilidade política de pessoas manifestamente impreparadas e inadequadas, para usar a qualificação mais benigna, visto que esta ascensão acontece em muitos casos por via fraudulenta ou pelo menos viciada. São conhecidos casos que chegaram ao espaço público. Outros não são conhecidos, mas a prática é difusa. E é esta prática que alimenta uma grave doença do sistema de partidos, ou seja, a endogamia, responsável pela perda de contacto dos partidos com a sociedade civil, mas também pela ocupação incompetente do aparelho de Estado, com as consequências nefastas que são conhecidas. E este fenómeno endogâmico parece estar a corroer o PS de tal modo que até já está a entrar no domínio do anedótico, pela interpretação literal que está a ser feita deste fenómeno pelos que o protagonizam e pelos que o lêem e criticam! E tenderá a aumentar se não se alterar o sistema de selecção das candidaturas, seja aos órgãos dirigentes do partido seja às instituições políticas de origem electiva.

Na verdade, grande parte dos movimentos políticos não partidários alimenta-se – do ponto de vista dos eleitores, mas também do ponto de vista dos candidatos ou dirigentes – de militantes que abandonaram ou que acabarão por abandonar os partidos, de um modo ou de outro. Voluntariamente ou expulsos. E há várias maneiras de abordar com seriedade este problema partidário, vista a dimensão que tem vindo a ganhar essa tendência da política autárquica que podemos designar por movimentos políticos autárquicos não partidários. Mas há uma que não é desejável: a de apontar o dedo, desatando pura e simplesmente à bastonada moral e administrativa. Não só porque é feio e porque agudiza o problema, mas também porque indicia um comportamento simétrico, que acusa os mesmos defeitos que se atribui aos que deixaram de ser militantes. Uma posição destas sabe a visão de seita, pouco compatível com a tradição, a dimensão e a vocação de um grande partido de governo como é o PS. E até porque os partidos políticos, mais do que fazerem juízos morais e negativos sobre a diferença, as razões da dissidência ou os comportamentos políticos, incentivando a “caça às bruxas”, seja por que via for, têm, isso sim, a responsabilidade de compreender a fundo o que se passa à sua volta, respondendo com eficácia aos problemas. Curiosamente, este processo administrativo em curso contra os trezentos e vinte faz-me lembrar a questão catalã, respeitando naturalmente as devidas proporções. É claro que os independentistas violaram a constituição de 1978, acabando, por isso, na prisão ou em fuga. Mas temos a certeza de que esta é a melhor maneira de resolver um problema que envolve milhões de catalães? Que foi feito da política? Por que razão cresceu o independentismo na Catalunha? Curiosa a expressão independentismo, porque também entre nós o que se está a passar é um transvase precisamente para os chamados movimentos independentes! Com pequenas catalunhas autárquicas na nação partidária! Mas, no caso do PS, não seria melhor que o secretário-geral – que mostrou uma enorme coragem na promoção desta solução de governo – repensasse a sua posição sobre as primárias e promovesse também um repensamento mais profundo da identidade organizacional do partido e da sua própria relação com a cidadania?

Sentimento de pertença

A segunda razão é mais de fundo e tem a ver com a natureza do partido contemporâneo, especialmente se comparada com a do partido da primeira metade do século XX. Na verdade, naquele período os partidos nasceram para organizar politicamente as várias sensibilidades existentes na sociedade, facilitando a participação política através da mediação partidária, extremamente importante num período em que à escassez quantitativa e qualitativa de canais de informação correspondia uma generalizada iliteracia política. Fomentar o sentimento de pertença tornou-se extremamente importante para dar vazão à participação política. Numa palavra: votava-se na família política e o erro seria residual. Era fácil, eficaz e permitia o alargamento exponencial da participação política, numa época em que se estava a consolidar o sufrágio universal e, portanto, se estava a alargar a base eleitoral das democracias.

Ora, o que entretanto aconteceu, com o desenvolvimento da imprensa, do audiovisual e, agora, da Rede, foi uma expansão gigantesca dos canais de informação e uma verdadeira democratização do acesso à informação e da intervenção directa da cidadania na comunicação e na política, com a progressiva desintermediação destes processos. Sobretudo, agora, na era da Rede, embora a expansão da comunicação tenha conhecido uma aceleração incrível nos anos noventa do século passado. Com efeitos evidentes na cidadania, em ambos os sentidos. E, assim, o sentimento de pertença relativizou-se, dando lugar a uma participação agora também fundada na informação e no conhecimento. Ou seja, começou a emergir uma cidadania cada vez mais independente dos processos de intermediação comunicacional e política. Mas este sentimento de  pertença desapareceu de vez, tornou-se residual, desnecessário? Não, mas passou a só intervir parcialmente nas escolhas e decisões políticas dos cidadãos em geral. Continuando a ser muito importante, relativizou-se e deu lugar a uma afirmação mais autónoma da cidadania que partilha uma pertença política.

Que consequências resultaram deste processo? Uma consequência é certa: o sentimento de pertença passou a determinar só uma parte da decisão política e eleitoral porque a outra parte passou a resultar inevitavelmente da informação, do conhecimento e da reflexão pessoal. E um partido como o PS tem o dever de promover precisamente esta segunda dimensão, se é verdade – e é – que sempre se assumiu como um herdeiro político do iluminismo, ou seja, aquele que tem como horizonte da sua estratégia a máxima de que fala o Kant de “Was ist Aufkaerung?”: “sapere aude!”, ter a coragem, a audácia de saber. Uma saída – Ausgang – do preconceito para as luzes! Há, a propósito, uma afirmação de Foucault, no seu texto “Qu’est-ce que les Lumières?”, que sintetiza tudo o que acabo de dizer: “a Aufklaerung é simultaneamente um processo de que os homens fazem colectivamente parte e um acto de coragem a efectuar pessoalmente”. Na linguagem de hoje, uma cidadania esclarecida e emancipada, onde a dimensão comunitária nunca poderá anular a afirmação pessoal.

Conclusão

É daqui que os partidos têm de partir, repensando a sua relação com a cidadania, seja ela a da militância ou não.

Ora, se pensarmos a questão dos trezentos e vinte (e de todos os outros que saíram silenciosamente) com estas duas razões é fácil tirar conclusões: o excesso de endogamia juntamente com a relativização estrutural do sentimento de pertença (tal como era concebido) está a produzir efeitos disruptivos no sistema de partidos que urge compreender e para os quais é necessário encontrar respostas estruturais, designadamente no plano da identidade organizacional e das relações com a cidadania. Ou seja, tratando-se de um problema político não pode ser resolvido com sanções administrativas e com cruzadas morais.

Mas, no que toca ao PS, se até a simples questão das primárias se encontra adormecida como será possível responder com visão a um problema que tem dimensões de futuro?

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