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Sábado, Dezembro 21, 2024

Truques nas contas públicas?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Quando Fernando Medina, ainda como Ministro das Finanças, anunciou que a execução orçamental prevista para 2023 se traduziria num excedente superior ao anterior, o que poderia justificar a constituição de um “Fundo Soberano” logo crismado como “Fundo Medina”, e, posteriormente, que, os resultados de 2023 permitiam reduzir a dívida pública a menos de 100 % do PIB, logo se levantou alguma discussão, atiçada por um documento produzido já em 2024 pela Unidade de Apoio Técnico Orçamental que funciona junto da Assembleia da República. Sem pretender revisitar a história das Contas Gerais do Estado desde as reformas de Salazar parece-me útil partilhar algumas reflexões e informações sobre a forma como em certos momentos estas questões foram tratadas.

Comecemos por Salazar e pelos seus Decreto (com força de lei) nº 18 381, de 24 de Maio de 1930 (Reforma a Contabilidade Pública), e pela Reforma da Conta Geral do Estado e Decreto-Lei nº 27 223, de 21 de Novembro de 1936 (Regula a organização da conta geral do Estado, bem como a utilização dos saldos apurados nas contas de anos económicos findos, e define as despesas que podem ser consideradas como extraordinárias).

O segundo diploma veio enquadrar uma prática que julgo já estava a ser ensaiada, no sentido de financiar despesas de investimento, por exemplo as abrangidas pela Lei da Reconstituição Económica vigente a partir de 1935, com saldos de anos findos. Não se criou um “Fundo Medina” avant-la-lettre nem se optou pela desorçamentação: os saldos de gerência eram reinscritos no orçamento das receitas como “receitas extraordinárias” eram contabilisticamente afectos a “despesas extraordinárias” do orçamento das despesas. O primeiro diploma continha contudo uma estipulação que me parece, em tese, questionável, permitindo a “puxada” ao Orçamento Geral do Estado de fundos correspondentes a empréstimos não utilizados durante o ano em que deram entrada nos cofres do Estado:

Artº 5º O produto de empréstimos consignados a despesas orçamentais será escriturado em conta de depósitos em operações de tesouraria, passando para receita efectiva do Estado à medida que o levantamento de fundos se realizar e por importância correspondente ao seu valor.

Realizadas todas as despesas para cuja satisfação haja sido emitido um empréstimo o saldo que porventura exista será imediatamente levado a receita efectiva do Estado.

“Receita efectiva” não terá aqui o significado que viria a ter mais tarde no nosso direito orçamental, de receita que não está associada à criação de um passivo financeiro, mas choca um tratamento que implica a dissimulação do recurso ao crédito que está na sua origem. Tenho conhecimento pessoal de que a Direcção-Geral de Contabilidade Pública continuou a fazer, após 1976 “puxadas” ao Orçamento do produto de empréstimos já arrecado em anos anteriores, prática susceptível de prejudicar a disciplina orçamental e a determinação do impacto económico das receitas e despesas orçamentais(i).

Os dois diplomas de Salazar referidos procediam também, cada um deles, a uma tentativa de conter o recurso a operações de tesouraria para satisfazer o pagamento de despesas orçamentais, acabando por encerrar muitas das contas na altura abertas e juntando-as numa mesma conta.

Foram ainda tomadas medidas conducentes à redução ou consolidação do endividamento do Estado para com o Banco de Portugal, no âmbito de um novo contrato e para com a Caixa Geral de Depósitos no âmbito de uma reforma que havia sido encomendada a pessoalmente a Salazar ainda antes do seu ingresso no Governo como Ministro das Finanças, tendo-se seguido a consolidação da dívida de curto prazo existente.

A partir de 1969, com aparente suporte num Decreto-Lei(ii) que permitia que o Tesouro fizesse aplicações rentáveis dos seus fundos terão voltado a multiplicar-se operações de tesouraria não regularizadas através do Orçamento, que em 1988 Cavaco Silva e Miguel Cadilhe tentaram regularizar com uma técnica semelhante à de Salazar, criando uma conta chamada CEROT.

Tanto quanto tenho presente foi na mesma altura que o Estado procedeu à redução do passivo do Estado junto do Banco de Portugal, autorizando a revalorização do ouro incluído nas suas reservas. Assim sendo, o Banco manteve o valor do seu activo, uma vez que a revalorização do ouro e a redução do passivo se equilibravam. Um truque, concedo, mas que beneficiou o Estado.

No entanto no ciclo de Cavaco Silva foram adoptadas orientações que, concedo que talvez ao arrepio das intenções originais, abriram a porta para distorções na verdade das Contas Públicas:

  • a consignação de receitas ao abrigo da Lei-Quadro das Privatizações
  • expedientes para garantir o transito entre anos financeiros de disponibilidades orçamentais não apuradas por via do encerramento da Conta – Geral do Estado ou simplesmente o pagamento de despesas em ano diferente daquele em que são registadas.

No que diz respeito à Lei – Quadro das Privatizações(iii)

 Artigo 16.º

Destino das receitas obtidas

As receitas do Estado provenientes das reprivatizações serão exclusivamente utilizadas, separada ou conjuntamente, para:

a) Amortização da dívida pública;

b) Amortização da dívida do sector empresarial do Estado;

c) Serviço da dívida resultante de nacionalizações;

d) Novas aplicações de capital no sector produtivo.

abriu-se uma porta para desenvolvimentos estranhos com as “novas aplicações de capital no sector produtivo”: no ciclo seguinte ao de Cavaco Silva os FRME e FRMERMI, fundos de apoio às reestruturações de empresas em dificuldades no âmbito do SIRME criado pelo Ministro da Economia Joaquim Pina Moura tiveram o seu capital realizado com mobilização de receitas das privatizações. Ora já se sabia que o dinheiro alocado a esses fundos era para torrar.

 Sobre os expedientes para garantir a transição de disponibilidades orçamentais já tive oportunidade de exemplificar(iv) com uma disposição da Lei do Orçamento para 1994:

Tendo em vista as características dos programas com co-financiamento comunitário, bem como do Programa de Desenvolvimento Regional Integrado de Trás-os-Montes (PDRITM) e com o objectivo de que não sofram qualquer interrupção por falta de verbas, transferir para o orçamento de 1994, nomeadamente para programas de idêntico conteúdo ajustados ao Quadro Comunitário de Apoio 1994-1999, os saldos das suas dotações constantes do orçamento do ano económico anterior, devendo, para o efeito os serviços simples, com autonomia administrativa e com autonomia administrativa e financeira, processar folhas de despesa e requisição de fundos pelo montante daqueles saldos e pedir a sua integração até 30 de Maio de 1994.

Repare-se que deste modo, para os serviços simples ou com mera autonomia administrativa se empolava o valor da despesa do ano anterior.

Quanto às dotações orçamentais para o aumento de capital das empresas públicas ou sociedades de capitais públicos – eram (são) inscritas no Capítulo de Despesas Excepcionais do Orçamento do Ministério das Finanças, e processadas a favor da Direcção-Geral do Tesouro, que depositava o produto em operações de tesouraria, sendo a realização dos aumentos de capital diferida para o ano ou anos seguintes.

Com a criação, a partir de 2002, dos Hospitais-Empresa (pública) começou a processar-se em larga escala um outro truque sofisticado: no início de cada ano o capital social nominal parece suficiente, mas a insuficiência das dotações para funcionamento leva ao acumular de dívidas a fornecedores e de prejuízos, pelo que o capital nominal vai sendo comido. No fim do ano o Estado injecta novos fundos nestas sociedades, permitindo repor uma situação líquida positiva e pagar pelo menos parte da dívida a fornecedores, e o ciclo recomeça. O Doutor Eugénio Rosa tem chamado a atenção aqui no Jornal Tornado para a má gestão inerente a esses truques.

O Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), criado em 1989, que mereceu recentemente um estudo publicado no site do Conselho das Finanças Públicas que talvez deva ser lido em conjunto com o que a própria Segurança Social escrevia sobre o tema em 2022 (Saiba onde está a ser aplicado o dinheiro das pensões), e com um comentário do ECO relativo a 2023 (Fundo da Segurança Social valoriza 9,1% em 2023 e bate concorrência).

Dado que até lhe têm sido afectas receitas fiscais, como o AIMI – Adicional ao IMI , conhecido por Imposto Mortágua, julgo que faria sentido, em vez de criar um “Fundo Medina” para aplicar os excedentes do Orçamento do Estado, legislar de forma permanente para garantir a sua aplicação na amortização da dívida pública e no reforço do FEFSS. Recorde-se que o FEFSS fez em tempos uma aplicação “rentável” na Portugal Telecom que por sua vez fez uma aplicação “rentável” na Rioforte do Grupo Espírito Santo e investiu na OI, perdeu o dinheiro e ninguém foi condenado. Com um “Fundo Medina” à solta pressionado, para obter resultados mais impactantes, a diversificar a carteira de “investimentos rentáveis” multiplicaríamos as oportunidades…

No entanto Fernando Medina, ainda como Ministro das Finanças, desencadeou em finais de 2023 uma operação conducente a reduzir a dimensão da dívida pública portuguesa a menos de 100 % do PIB . O impacto psicológico foi sem dúvida importante, mas têm surgido vozes a qualificar a operação como “truque”.

Foi dito a propósito que para conseguir este resultado se tinha amortizado dívida remunerada com taxas de juro reduzidas e que teria sido mais racional aplicar essas disponibilidades no Banco Central Europeu com uma taxa de juro, como é conhecido, neste momento elevada. Não sei se esta afirmação corresponde à realidade – se sim, a questão deveria ter sido adequadamente ponderada – mas não a tenho visto reproduzida nas peças que têm falado do “truque”.

Essas peças no essencial reproduzem um título do ECO “Medina financiou queda da dívida pública com dinheiro de pensões futuras” que foi sendo reproduzido por sucessivos jornais económicos até chegar ao Grupo Parlamentar do CDS que exigiu que o colega deputado da bancada do PS comparecesse, enquanto ex-Ministro, na Comissão Parlamentar especializada.

No entanto a notícia dos “económicos” tem na origem um estudo da Unidade Técnica de Apoio Orçamental junto da Assembleia da República, identificado como Relatório UTAO nº 4 / 2024, datado de 9 de Abril de 2024, com assunto “Relatório UTAO n.º 4/2024 Condições dos mercados, dívida pública e dívida externa: março de 2024” e publicado no site da Assembleia: Condições dos mercados, dívida pública e dívida externa: março de 2024

Explica o Relatório, por um lado que:

O princípio da unidade de tesouraria obriga uma esmagadora maioria de entidades em todos os subsectores a aplicar excedentes de tesouraria no IGCP, seja sob a forma de depósitos à ordem e a prazo, seja sob a forma de fundos CEDIC. A carteira de CEDIC (Certificados Especiais de Dívida de Curto Prazo) é a maior componente do instrumento Depósitos.

e que houve orientações para se fazer a aplicação em CEDIC(v), que o IGCP deverá remunerar.

Nazaré Costa Cabral (Faculdade de Direito / Universidade de Lisboa)

Por outro lado continuam em vigor as orientações do Governo de Passos Coelho, concretizadas por Vítor Gaspar antes da sua saída, de aplicação em títulos de dívida pública de uma percentagem elevada de disponibilidades do FEFSS, que não são muito populares junto dos economistas e juristas – economistas que se ocupam de questões relativas à Segurança Social, como é o caso de Nazaré Costa Cabral, actualmente Presidente do Conselho de Finanças Públicas que é um órgão independente ao contrário da UTAO, unidade de apoio técnico da Assembleia da República, coordenada pelo antigo Secretário de Estado de José Sócrates, Rui Baleiras(vi).

A UTAO – gerando uma reacção de desagrado de Medina – considerou “artificial” a redução do peso da dívida pública abaixo dos 100 % do PIB, na medida em que não resultou de amortização da dívida mas apenas de um efeito de consolidação contabilística, sendo contudo certo que é o conjunto da dívida consolidada das administrações públicas o relevante para efeitos do Tratado de Maastricht.

Rui Baleiras (Linkedin)

A UTAO referiu também, o que julgo passou desapercebido aos jornais económicos, que de 2023 para 2024, a “dívida comercial” (a fornecedores) aumentou 306 milhões de euros. Por dificuldades de cômputo da dívida comercial na altura em que o Tratado foi aprovado, tal dívida não foi considerada relevante para efeitos do Tratado. Terá sido Medina tão maquiavélico que quis que os serviços aplicassem disponibilidades de tesouraria na compra de dívida pública em vez de pagar aos fornecedores? Si no e vero

Esse sim, seria um truque que não poderia ser perdoado a Medina. De qualquer de modo é de rejeitar a insinuação, incutida subliminarmente nos leitores dos jornais económicos, de que as pensões futuras estão em risco por o dinheiro ter sido “gasto” com a dívida pública. Por altura do 25 de Abril de 1974 a então Previdência Social tinha os seus dinheiros aplicados em títulos e rapidamente se desfez deles para ocorrer ao financiamento das suas novas responsabilidades. E não se diga que a aplicação em títulos de dívida pública comporta riscos para os pensionistas porque a evolução posterior a 2011 mostra que em Portugal os poderes públicos não acarinham qualquer sugestão de hair-cut da dívida pública.

Por Fonte, Conteúdo restrito, https://pt.wikipedia.org/w/index.php?curid=3488539

Com isto não estou a defender Fernando Medina contra os seus detractores da Direita. Estou a dizer exactamente o que disse há anos para defender Vítor Gaspar quando este reforçou a obrigação de a Segurança Social investir em títulos de dívida pública.

 

Notas

(i) Este diploma foi, com diversos outros diplomas históricos, inclusive dos últimos anos da Monarquia, revogado pelo Decreto-Lei nº 155/92, de 28 de Julho, anunciado definir o regime de Administração Financeira do Estado não dispôs sobre um conjunto de matérias abrangidas pelos diplomas revogados.

(ii) Do Ministro das Finanças João Dias Rosas, já no tempo de Marcelo Caetano.

(iii) Lei nº 11/90, de 5 de Abril

(iv) A Intendência – Geral do Orçamento – História de um Organismo que Nunca Existiu (1929-1996) , p . 131.

(v) Creio que CEDIC é a denominação actualizada, mais sexy ,de um instrumento antiquíssimo de aplicação de excedentes em “Certificados de Dívida Inscrita”

(vi) Julgo que durante algum tempo houve quem confundisse UTAO e CFP por a ideia de criação de uma UTAO, com a denominação de GATO – Grupo de Apoio Técnico-Orçamental, junto do Parlamento ter sido inicialmente defendida por Teodora Cardoso, infelizmente já falecida, que veio a ser a primeira presidente do Conselho de Finanças Públicas.

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