Nunca tive grande coragem para escrever sobre bailado. Quem seguiu a minha vida pessoal sabe das ligações que me prenderam sempre com essa forma do artístico, ligações passionais todavia – mas não, não estive sobre as tábuas, a não ser com a câmara de vídeo na mão, nem nunca tive aulas, nunca dancei o Lago dos Cisnes, apesar de entregar-me, confesso a muito pas de deux arrebatado.
Na última temporada, tenho mesmo constado do projeto da Companha Nacional de Bailado aliada aos poetas, com um orgulho extremo. Puseram-me a poetizar sobre um dos fenómenos culturais que mais admiro, provocando-me as emoções – e isso é uma das coisas que mais me mobiliza e estimula. Tenho, pois, assistido a todos os espetáculos – os mais clássicos e os mais antecipadores, um ou outro que só as plateias do futuro vão considerar coisa sua, pois os cânones mudam e felizmente a cultura é um mutante espantoso. (Quando hoje vejo amigos a rirem-se de Miró, por não conseguirem entendê-lo, lembro-me dos que há cem anos cuspiam nas telas de Amadeo…).
Lamento muitas vezes as casas menos cheias, as plateias menos compostas em alguns destes tesouros. Há uma entrega tão grande, de generosidade tão desmesurada das equipas que criam para nós, que o facto de não lhes respondermos dignamente nos envergonha, a todos.
O melhor de nós está na criatividade
Escrevo hoje sobre bailado apenas com esse alerta: o melhor de nós está na criatividade e se a deixarmos morrer, num canto solitário, morremos todos muito mais depressa.
Não creio que o bailado seja alguma vez uma prioridade das massas, não sou ingénuo a esse ponto, é claro. As massas não têm prioridades de consumo muito para além da sobrevivência. Isso levou-as à derrota do sofá, com o comando na mão e os olhos semicerrados sob a boçalidade que lhes entra em casa, aparentemente gratuita, mas que nos obriga ao pagamento de preços muito altos.
A pequena elite, em contrapartida é que pode crescer. Não falo da elite económica ou política – os seres mais ignorantes, alguns aberrantes que conheço são ricos ou poderosos, na hierarquia das decisões que nos impõem, figuras lamentáveis mas que são o topo do sistema -, mas de uma elite subjacente, ainda capaz de atenção: aquela que se cultiva e desperta para o cultural e que nega a pobreza do espírito permitindo-se momentos excecionais.
As escolas deviam ser subsidiadas para poderem estar nas estreias dos bailados e os alunos deviam começar a reabrir os cinco sentidos, isto é, a restaurar a sua sensualidade, para o melhor lado da vida, que radica no Belo (coisa velha e entediante?), no Estético (que parece ter ficado refém dos valores menores dos audiovisuais de consumo quotidiano), na Poética (coisa que da filosofia foi mobilizada para o terreno conflituoso das batalhas sociais até perder quase todas as pequenas guerras, sendo hoje um elemento das guerrilhas resistentes).
Ir ao bailado é reaprender a sentir
Nos anos 90, Mario Perniola, mestre entre mestres – e todavia um marginal entre os mestres – incluiu outros territórios na sua pesquisa filosófica e enfatizou O Sentir.
Perniola defende que a sensologia, modo de sentir que requer um universo emocional impessoal, é caracterizado por uma experiência anónima, no qual tudo aparece como já sentido. Para Perniola, este tipo de sentir não é sequer reconduzível ao individualismo ou ao narcisismo, mas “a um especularismo que reflete experiências já prefiguradas”.
Parece confuso mas não é. Basta olharmos o analfabetismo emocional que triunfa no nosso tempo.
Turbulência no Teatro Camões
Não sei que destino terá o espetáculo Turbulência, agendado para apenas três dias (de 11 a 13 de novembro) no Teatro Camões, em Lisboa, com bilhetes a partir dos 5 euros – mas sei que é um privilégio ser espetador do que de melhor se faz por cá.
Turbulência é um momento exaustivo, de exaltação do corpo – e assim é também de todos os seus sentidos, sendo que o do paladar se inclui, e todos se mobilizam de uma forma inesperada e emergente. É subversão. É inquietude. E sem inquietude o corpo é um saco vazio, pois a inquietude é o triunfo do pensamento – e sem ele o corpo inadequa-se.
Depois da experiência de Tábua Rasa em 2015, a Companhia Nacional de Bailado volta a colaborar com a Vo’Arte num desafio endereçado à equipa de coreógrafos: António Cabrita, Henriett Ventura, São Castro e Xavier Carmo.
Com efeito, a experiência e as provas dadas por estes bailarinos, como conjunto, como intérpretes ou como criadores, fazem deles uma equipa ganhadora, inventiva e de uma sensibilidade à qual não podemos nem devemos ficar indiferentes. A aposta nesta continuidade criativa vem, claramente, contrastar com o mote do novo espetáculo Turbulência, que os artistas definem como “a temporária desestabilização de um padrão, na inquietude do corpo e no desassossego do pensamento”.
Agrada-me esta (minha) coragem nova, a de escrever sobre bailado. E mesmo que não o saiba fazer, aprendo a sentir com o que escrevo e isso basta-me.
Galeria de imagens
Vídeos
Este artigo respeita o AO90