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Sábado, Dezembro 21, 2024

Turismo interior

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Cada pessoa vai descobrindo por si mesma que ao desejo de ser amada corresponde ter de obedecer à imagem que os outros fazem dela, isto é, à expectativa dos outros.

Cada um pode descobrir a diferença da imagem que oferece de si e a solidão que dos outros esconde. Muitas pessoas  acordam, do sonho da bela adormecida, ao som do trovão da tempestade.

A distância entre o que eu sou e o que os outros imaginam que eu sou, pode sofrer uma fulguração muito precisa e angustiante. Um discernimento súbito pode rasgar o véu da ilusão infantil, sobretudo em épocas de crise afetiva.

Tomar consciência plena desta fachada que apresentamos, tomar consciência deste muro que construímos, e dentro do qual estamos completamente isolados, muro de defesa fora do qual não somos mais que o ator a quem os «outros» distribuíram um papel, pode ser tão ameaçador como subitamente ser iluminado pela ondulação de um foco de luz que nos despe em palco e  nos deixa nus obscurecendo todos os outros espetadores numa massa imprecisa.

Até a Mafalda de Quino ironiza com este despertar para o turismo interno, a primeira viagem ao eu interior.

Quem pode amar este eu que eu sou? Onde é que eu não me despedi de mim, quando de mim desisti para obter a aprovação dos outros?

Quanta saudade de mim se reflete no espelho onde a minha imagem me sorri?

Quantos cravos vermelhos mastiguei e engoli, sufocada pelo olhar dos outros?

Quantas cedências são uma anulação, quantos “sim” silenciaram, cá dentro, um desejo de “não”?

Na idade adulta, pode acontecer olhar as mãos vazias, por se ter negado a genuinidade que poderia ter amadurecido, se a censura dos outros e tantas vezes amor castrante dos outros, não o tivessem proibido.

A quem oferecer a verdade de mim?

Como responder à fragilidade daquele que eu sou, escondido e perdido, tão longe da imagem  que dou?

Muitos comportamentos desviantes surgem desta incapacidade de ligar o sentir, ao pensamento admitido à consciência. Eu sinto, mas nego o que sinto porque me foi instalada uma barreira de preconceito, de julgamento que não me permite aceitar quem sou.

É assim com se fosse fazer turismo ao interior do país, e depois recusasse ver pessoas grosseiras, mal educadas, brutas, barulhentas e enfeitadas de berloques dourados porque prefiro acreditar que faço parte do povo europeu culto, inteligente, educado, sofisticado.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


 

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