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Quarta-feira, Janeiro 1, 2025

Uber e outras “uberizações” em curso

António Garcia Pereira
António Garcia Pereira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Professor Universitário

À medida que o tempo vai decorrendo, vai também ficando cada vez mais claro aquilo que, sempre sob a capa da “modernidade”, do “avanço tecnológico” e da “eficiência ambiental e urbana”, é verdadeiramente a Uber.

Depois das denúncias sobre a verdadeira exploração a que os motoristas ditos “independentes” estão sujeitos e a concorrência desleal baseada na desregulação e na eximição aos requisitos e condições impostos aos transportes públicos, surgiram diversas acusações de ostensiva ignorância de práticas de discriminação e de assédio sexuais. O próprio CEO da Uber, Travis Kalanick, foi filmado a destratar e a insultar um condutor Uber.

Ficou também a saber-se que a empresa instalou e utiliza um programa (o VTOS) que armazena e gere os dados pessoais dos clientes e exclui aqueles que sejam considerados indesejáveis ou violadores das regras do serviço. Criou uma funcionalidade (o Greyball) destinada a identificar inspectores e/ou agentes de autoridade que, fazendo-se passar por triviais passageiros, estejam a procurar apanhar uma viatura da Uber nos locais onde não está autorizada a operar.

Google contra Uber

A própria Google intentou um procedimento judicial contra a Uber acusando-a de lhe ter roubado segredos industriais na produção das respectivas viaturas autónomas (um autêntico “menino de oiro” da auto-promoção da Uber, entretanto imobilizado após um grave acidente ocorrido com uma dessas viaturas sem condutor).

Soube-se – quer por denúncias dos próprios motoristas, quer por uma outra acção entretanto intentada num Tribunal federal de Los Angeles – que o novo sistema de navegação, implementado a partir de Setembro de 2016 em substituição do anterior e muito criticado sistema do multiplicador, manipula, propositada e sistematicamente, os dados utilizados para determinar o preço (a mais) pelos clientes e a remuneração (a menos) paga aos motoristas, através da disponibilização de trajectos diferentes aos primeiros (mais longos) e aos segundos (mais curtos) e embolsando em proveito próprio a diferença, da ordem dos 10% de acordo com os autores da referida acção judicial.

A Uber nos diferentes países europeus

Entretanto, em 7 de Abril último, a Justiça italiana decidiu proibir a Uber não apenas de funcionar em todo o território do país, como também de levar a cabo qualquer tipo de promoção ou publicidade. E na Dinamarca, após a entrada em vigor de uma nova legislação, que designadamente passou a prever a obrigatoriedade de instalação de contadores ou taxímetros, foi a Uber que tomou a decisão de se retirar a partir de 18 de Abril.

Considerando existir, não obstante a aparência formal de uma mera prestação de serviços, um verdadeiro vínculo laboral entre a Uber e os seus motoristas, a Justiça inglesa decidiu a favor destes uma acção em que eles reclamavam direitos próprios dos trabalhadores por conta de outrem, tais como os direitos a um salário mínimo, a férias e a protecção social em situação de doença ou acidente.

Fundamentalmente com o mesmo tipo de argumentos, em França, a URSSAF (entidade a quem compete a cobrança das contribuições sociais) desencadeou uma série de procedimentos judiciais com vista a requalificar como assalariados ou trabalhadores dependentes os motoristas da UBER.

E em Portugal?

Nada disto se passa, todavia, em Portugal, onde – ao invés do que sucede na esmagadora maioria dos países europeus – não apenas se continua a tolerar a Uber como nenhuma entidade se preocupa quer com o reconhecimento do vínculo de subordinação dos motoristas à dita Uber (com as respectivas consequências para esta, em termos de reconhecimento e pagamento de remunerações mínimas, de férias, de subsídios de férias e de Natal, de seguros de acidentes de trabalho, de horários máximos de trabalho, etc., etc.), quer com o controle do gigantesco sistema de aquisição de dados pessoais de cidadãos que a mesma empresa presentemente gere à rédea solta.

Mas a questão da Uber é ainda particularmente importante por levar à última expressão um fenómeno em constante crescimento no mundo do Trabalho, também em Portugal, e que consiste na contratação de trabalhadores, através do aliciamento ou mesmo da imposição de que estes se apresentem como entidades autónomas (designadamente colectivas, como sociedades por quotas ou sociedades unipessoais) e celebrando com tais entidades formais pretensos contratos de prestação de serviços, disfarçando desta forma fraudulenta verdadeiras relações de trabalho subordinado e contornando os direitos laborais mais básicos.

Este truque – conhecido no Brasil por “pejotização” e que permite atingir custos laborais muito baixos, pois não há remunerações mínimas nem pagamento de horas extra ou de subsídios de férias e de Natal, nem contribuições patronais para a Segurança Social nem prémios de seguros de acidentes de trabalho – é hoje cada vez mais praticado entre nós nos mais diversos sectores (desde a distribuição de empresas da área alimentar até à prestação de serviços médicos, passando pela actividade de peritos de seguradoras, etc.) e passa por completo ao lado das estatísticas oficiais.

As quais se reportam, mesmo assim deficientemente, a trabalhadores independentes individuais e que, em qualquer caso, já são calculados como atingindo 12,5% de toda a população activa. Ou seja, mais de 600.000 pessoas que em cada dia não sabem se, ao final do mesmo, ainda vão ter ganha-pão, já que o contrato de prestação de serviços pode ser feito cessar livremente pela contra-parte a qualquer momento e sem direito a qualquer compensação ou indemnização.

“Uberização” das relações de trabalho

O instituto ou mecanismo da chamada “desconsideração da personalidade jurídica formal”, para mais do lado do trabalhador, é praticamente desconhecido da nossa Justiça Laboral – que, inclusive, chega ao ponto de apodar o trabalhador que a invoque como autor da simulação, de fraude ou de má fé – a ACT não fiscaliza e, quando fiscaliza, não vislumbra este tipo de ilícitos e o Ministério Público escusa-se a intentar a acção especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho (criada pela Lei nº 63/2013, de 27/8) quando a pessoa física do real trabalhador e falso prestador de serviços se encontra (propositadamente) ocultada pela cortina de uma das já referidas entidades colectivas.

Como o crime assim fica impune e compensa largamente, não é de estranhar que esta forma artificiosa de contornar a aplicação do Direito do Trabalho e o reconhecimento dos (poucos, é certo) direitos que ele consagra se tenha vindo a ampliar sucessivamente, aumentando a concorrência entre trabalhadores e fomentando o abaixamento dos salários e a inutilização dos direitos laborais e sociais mais básicos.

Por isso, proclamar – como faz agora o Governo – que vai limitar mais a contratação a prazo, mas deixar à solta estas práticas de verdadeira “uberização” das relações de trabalho significa deitar fumo à esquerda para deixar a exploração e precarização mais brutais escaparem à direita!…

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