A edição anual do Fórum Económico Mundial (também conhecido como o Fórum de Davos, por se realizar naquela estância suíça), que recentemente teve lugar, pode ter sido marcada, como escreveu Jorge Nascimento Rodrigues no EXPESSO, por três palavras malditas: Rússia, Recessão e Taxas de Juro (“rates”, na terminologia anglo-saxónica), mas o que mais terá ressaltado deste fórum dos ricos foi a presença de Henry Kissinger que do alto do seu inquestionável “ocidentalismo” apelou para não se infligir uma derrota pesada a Moscovo e pediu “sensatez” à Ucrânia. Este pragmatismo do velho mestre do realpolitik, só poderá ter surpreendido quem apenas leia a propaganda ocidental e acredite piamente na narrativa ucraniana, como o fez Manuel Carlos Nogueira nas páginas do PUBLICO e seguindo uma muito rigorosa visão aistórica dos factos.
Os comentários e a opinião de Henry Kissinger (que não são de agora, como tive a oportunidade de aqui o referir em meados do mês passado) ganham especial relevo quando se agrava a crise alimentar, energética e económica global, e quando as sanções financeiras ao Kremlin podem ter atingido um limite que está a levar ao aparecimento das primeiras brechas na aliança ocidental contra Vladimir Putin. Este sinal de bom senso, ganha ainda maior destaque quando crescem as notícias de que a situação no terreno está a chegar muito perto de ser militarmente irrecuperável, com a própria Ucrânia a admitir a superioridade russa na batalha pelo Donbass.
A quebra de moral depois da queda de Mariupol poderá estar a fragilizar a frente no Donbass e nem os milhares de milhões de dólares de promessas norte-americanas deverão inverter facilmente a situação que todos os comandos militares receiam.
Neste ambiente de alguma histeria e muitos interesses envolvidos na guerra, na sequência do pragmatismo de Kissinger veio, ainda em Davos, o investidor George Soros repetir a narrativa ocidental dos maléficos objectivos russos e chineses e da baixeza dos seus respectivos líderes, reafirmar o conhecido belicismo, caro a neoliberais e neoconservadores, recordar que a Ucrânia continua em posição de vencer esta guerra e que é obrigatória a ajuda do Ocidente, qualquer que seja o seu custo, até para garantir a sobrevivência da civilização (Soros dixit).
O que ele não disse é que o prolongamento da guerra na Ucrânia lhe poderá trazer (a ele e aos demais especuladores que enxameiam os mercados para obterem lucros da mera manipulação de preços e cotações de matérias-primas e demais produtos que agravam as condições de vida de todos nós) novos e maiores lucros, numa actividade puramente especulativa e raiando o criminoso que disfarçará mais tarde nas suas muito propagandeadas actividades “filantrópicas”.
Soros e as suas declarações têm que ser vistas como uma metáfora dos desejos dos especuladores e investidores no complexo militar-industrial norte-americano (os grandes fabricantes dos poderosos e dispendiosos sistemas de armamento, nos termos em que o popularizou o ex-presidente norte-americano Dwight D. Eisenhower, que agora vendem à Ucrânia e aspiram vender a todos os que dizem estar ameaçados pelo poder russo e chinês) estão a condicionar de sobremaneira as decisões sobre os combates na Ucrânia, que há muito deixaram de ser tomadas numa perspectiva militar e estratégica; se o fossem, talvez já se tivesse ensaiado um cessar-fogo e iniciado um verdadeiro processo de negociação que pusesse termo a um conflito que nunca deveria ter ocorrido.
Pese embora declarações mais ou menos tonitruantes, como a que há dias assegurava a oposição da Ucrânia a planos de paz europeus que “salvem a face de Putin” , constata-se já alguma mudança nas notícias em torno dos acontecimentos naquele país, pelo que a hipótese pode estar agora mais próxima.
A descodificação do pragmatismo de Kissinger e da quase histeria de Soros (o oportunista, sempre pronto a agitar os mercados e a provocar a volatilidade de que vive), aponta para a conclusão de que a Rússia estará a vencer a guerra terrestre no leste da Ucrânia e é por isso que aquele recuperou a sua antiga preocupação de não ver a Europa empurrar a Rússia para a Ásia e preconiza a aceitação dos prejuízos antes que o actual impasse se transforme rapidamente numa confrangedora derrota (recordem-se os casos do Vietname e, mais recentemente, do Afeganistão) para todo o Ocidente.
A quase evidência de fracasso da estratégia norte-americana (que parece ressaltar deste editorial do New York Times onde já se argumenta que uma derrota da Rússia é irrealista e perigosa) e contrariando os anseios ocidentais, o regime russo parece capaz de sobreviver ao conflito, facto que torna ainda mais preocupante a acumulação de armamento no lado ocidental da Ucrânia (quer dentro do seu território, quer nos países limítrofes), seja pelo seu potencial de uso do outro lado da fronteira, seja pelo contributo que pode dar para transformar o que reste do país em mais um estado falhado – com a pulverização de milícias e outras facções paramilitares – e na balcanização da região.