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Sábado, Fevereiro 1, 2025

Um Bebé na palma da mão

Eduardo Águaboa
Eduardo Águaboa
Escritor, Ensaísta, Comentador político especializado em ideias gerais

cemiterio-de-criancas

 

Ricardo, autor de uma dezena de Obras literárias, andava muito deprimido.

Para se inspirar ele percorria todas as tascas de todos os bairros de Lisboa que, realmente, eram (são) fontes a jorrar ideias. Basta estar calado e ouvir as pessoas.

Porém, achava que já tinha esgotado todas as “fontes” e que Lisboa, tão grande e tão sabe-se lá o quê, já não lhe dava “novidades”.

Disso mesmo deu conta ao seu amigo Raul, numa das noites que se encontraram no Bar dos Canalhas a quem desabafou a sua mágoa. Queria escrever, mas não tinha sobre o quê. Confessou-se um homem de muitos sentimentos, mas que os sentimentos são como as crianças, gostam de histórias e necessitam de muita atenção.

Raul disse ao amigo que se Lisboa, para ele, estava esgotada em termos de inspiração que saísse da cidade, que fosse a pé pelo país, decerto tropeçaria em muitas histórias e em muitos homens que dormem devagar e, portanto, com muito para contar.

Ricardo nem se fez rogado. Aquele conselho não era moribundo. No dia seguinte pôs-se a caminho.

Uns três dias depois, subiu a um monte de onde se avistava no sopé uma pequenina aldeia. Parecia um presépio. E gostou. Tanto que se sentou a contemplar e a imaginar plurais literários.

Só mais tarde, desviando os olhos para a direita, reparou que havia ali umas largas cruzes e pequenas lápides.
-É um cemitério! – pensou – e daquela aldeia!

Mas porque haveria de estar ali num ponto tão alto? Talvez para que os falecidos estejam mais perto do Céu! – deduziu.
E decidiu ir até lá.

Para seu espanto, quer as lápides quer as cruzes indicavam que eram crianças. Nem uma tinha mais de cinco anos.

E chorou. E no pranto imaginou que as crianças da aldeia sobreviviam pouco tempo. E passou a chorar convulsivamente.

De tal ordem que não deu conta de um velhinho que apoiado na sua bengala se aproximava dele. Até que este lhe tocou no ombro e perguntou:
– Porque chora assim tanto o meu amigo?

Ricardo com dificuldade lá lhe explicou a sua dor por ver um cemitério de crianças. Que nunca tinha imaginado uma coisa dessas. E até se interrogava como é que tal desgraça nunca tinha sido motivo de noticia.

O velhinho, emprestando-lhe o lenço para que o escritor limpasse as lágrimas, afagou-lhe a cabeça e disse-lhe:
Meu amigo, não chore…não chore…não são crianças…

– Como não são? Eu não vi o tempo de vida que lá está escrito em cada uma das campas?
– Sim…mas isso não é a idade.

– Então o que é?
– É um costume que nós temos na aldeia. Mal nascemos temos um caderninho onde apontamos os momentos que somos felizes, um minuto aqui outro ali…por aí fora. Então, quando alguém falece é feita a soma do tempo em realmente viveu. Posto isso, acredite que a maioria que está aí enterrada tinha mais de oitenta anos, só que, “vividos” quase ninguém passa dos cinco.

Foi então a vez do escritor recordar o seu percurso de vida e pareceu-lhe ter um bebé na palma da mão.

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