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Terça-feira, Outubro 1, 2024

Um “caso” Raquel Varela?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Raquel Varela, “Académica” (como ela própria se identifica), “Intelectual Pública” (no dizer de um amigo), “Tudóloga”?

Li em 21.10.2021 no Facebook o seguinte diálogo

Finalmente, o CC da FCSH da NOVA pronunciou-se impondo alguma decência & pondo fim ao ataque soez que a historiadora, pesquisadora e intelectual pública (concorde-se ou não com as suas posições), Raquel Varela, tem sido alvo na praça pública, com origem no IHC e com a instrumentalização dos mass media e de alguns académicos”

“Intelectual pública!? Anda ao colo dos grupos negacionistas de extrema-direita e direita (ex. queroemigrar.com), do Observador e da IL (ex. Farol XXI, Tertúlias da Junqueira), e vem para a RTP e redes sociais debitar a desinformação que encontra nas redes sociais dos charlatães negacionistas (ex. André Dias, Almeida Vieira). E depois ainda tem a presunção de escrever no seu blog que é um dos principais divulgadores de ciência em Portugal! Estou-me borrifando para as tricas que se vivem na FCSH que não devem ser muito diferentes das que poluem outras academias. Mas o que acima escrevi chega-me para formular a minha opinião sobre RV: desonestidade intelectual e petulância.”

Importa esclarecer desde logo, que a discussão que vem sendo suscitada em alguns meios de comunicação social a propósito do Curriculum Vitae de Raquel Varela não tem, ou não deveria ter, origem nas posições “negacionistas” daquela investigadora, a não ser que, como alguns vêm dizendo temer, seja resultado de uma retaliação de correntes mainstream nestas matérias, o que me custa a acreditar.

 

História Contemporânea e Relações de Trabalho

Deixem-me fazer um pouco de “auto-plágio” dos meus artigos no Jornal Tornado intitulados:

Novos tipos de greve, novos tipos de grevistas, em 21 de Novembro de 2018

As Greves “de Direita” em 11 de Setembro de 2019

1974 … em 9 de Outubro de 2019

por onde fui deixando reflexões que comecei a sistematizar desde que li, de Raquel Varela, o seu contributo – “Greves na Revolução dos Cravos (1974-1975)” – para Greves e Conflitos Sociais em Portugal no Século XX, publicado em 2012 pelas Edições Colibri.

Do último artigo, transcrevo:

Raquel Varela chama também a si as dores destes “movimentos alternativos” que combateram a Lei da Greve de Agosto de 1974 denunciando o Ministério do Trabalho de que ela tinha emanado (Costa Martins era Ministro e Carlos Carvalhas Secretário de Estado), apresentando a Lei da Greve de 1977 que revoga a anterior, como muito mais favorável. Assinala que, entre outras malfeitorias, a Lei de 1974, proibia a greve política e de solidariedade, a “cessação isolada de trabalho por pessoal colocado em sectores estratégicos da empresa, com o fim de desorganizar o processo produtivo” e a ocupação dos locais de trabalho durante a greve, e permitia o lock-out. 

É um facto, embora fosse necessário inquirir se foi efectivamente aplicada. Uma questão que seria importante elucidar era como é que esta lei da aparente iniciativa de “comunistas alinhados com a URSS” acolhia tantos traços do ordenamento jurídico da greve da República Federal Alemã, onde o PS realizou em 1973 o seu congresso constitutivo e que apoiou aquele Partido desde o início. Terá o texto, que daria resposta a pressões da Presidência da República, vindo do próprio Partido Socialista, ou até do Ministério de Justiça de Salgado Zenha? A investigadora refere, na edição da sua tese, que o PCP se queixa de ela ter sido previamente consensualizada com o PS e depois este ter enveredado pela crítica pública à lei, alegando não poder deixar de veicular o descontentamento manifestado pelas suas bases….

Se a Lei de 1977 é (efectivamente) mais favorável não foi por mera opção legislativa do momento mas porque entretanto a Constituição de 1976 – e importaria estudar os trabalhos da Assembleia Constituinte – veio dispor em sentido contrário ao da Lei de 1974 ao estatuir que “compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito” e ao proibir o “lock-out”. E mesmo assim, ao contrário do que faz a autora citada, talvez não se possa determinar o alcance do novo dispositivo legal através da identificação do que constava da Lei de 1974 e já não consta desta: o não haver proibição expressa de “cessação isolada de trabalho por pessoal colocado em sectores estratégicos da empresa” não tem coibido a doutrina de considerar ilegais as greves articuladas ou rotativas, e, mais recentemente, as greves cirúrgicas, etc.

Esta investigadora … afirma “sustentei em vários livros que é muito mais fácil hoje aos trabalhadores organizarem-se do que o era há 30 anos” . A sua análise “superestrutural” baseada nas leis da greve, precisa, como tentei mostrar, de ser melhorada. As possibilidades de organização eram, na minha visão, muito mais fortes logo a seguir ao 25 de Abril: por um lado os direitos foram sendo conquistados através do seu exercício, as derrotas da direita militar em 28 de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975 criaram mais confiança às organizações de trabalhadores e, não esqueçamos, o COPCON funcionou largamente, como se dizia na época, como “guarda – chuva protector das movimentações populares”, por outro existia na altura um número elevado de grandes empresas, em número de trabalhadores, e sectores muito combativos, como os metalúrgicos. Desde aí, verificaram-se processos de desindustrialização, situações de encerramento ou redução de pessoal em muitas empresas, uma tendência para a atomização das relações de trabalho.

A ideia de que a responsabilidade intelectual e política da lei “anti-greve” de 1974 era do PCP afectou traumaticamente alguns dos activistas da época, mas Raquel Varela, nascida em 1978 e com vários anos de frequência de Direito, podia ter tentado ver mais claro na sua investigação de doutoramento(i) (ii). E a ideia de que a organização dos trabalhadores agora é mais fácil, só não se conseguindo melhores resultados porque as Direcções sindicais refreiam os seus representados, pode ser igualmente enganosa.

Raquel Varela, creio que já no âmbito de linhas de investigação prosseguidas no Instituto de História Contemporânea, em que coordena um Grupo de História Global do Trabalho e dos Movimentos Sociais, elogiou, correctamente, o sindicalismo dos estivadores e as suas ligações internacionais, a combatividade do SEAL, sigla agora usada pelo sindicato histórico de Lisboa, que tem apelado à solidariedade com os precários (em Lisboa e em Setúbal) e, alargando o seu âmbito, tem tentado organizar os trabalhadores de outros portos e investiu num fundo de greve elevado. Mas o SEAL foi recentemente vítima de uma manobra jurídica que levou a associação de empresas que reunia os operadores para quem a maioria dos estivadores de Lisboa trabalhava a pedir a insolvência, desvinculando-se dela depois as empresas associadas. A CGTP manifestou solidariedade para com os trabalhadores e o sindicato, o BE mostrou acompanhar a situação, mas o Ministro Pedro Nuno Santos refugiou-se cinicamente na independência do poder judicial. Será mesmo mais fácil hoje em dia que os trabalhadores se organizem?

Repare-se que aqui não me estou tanto a pronunciar sobre o percurso académico de Raquel Varela, em cujo Curriculum dois membros do Conselho Científico da sua Faculdade anunciaram existir também publicações academicamente relevantes sobre Sociologia, Educação, Economia, Serviço Social, Ciência Política, como sobre o impacto que a sua visão da realidade laboral pode ter sobre o movimento sindical(iii)(iv).

Universidades, Faculdades e Institutos de Investigação

Julgo ser o Instituto de História Contemporânea (IHC) uma das instituições de investigação de direito privado criadas com base em legislação publicada em 1999 por Mariano Gago, que agora aparecem integradas mais facilmente em Faculdades e Universidades quanto estas passaram também a regime de direito privado, como foi o caso da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e da Universidade Nova de Lisboa. Dispõe de uma Direcção, um Conselho Fiscal e uma Mesa da Assembleia Geral e participam na sua actividade de investigação, docentes e investigadores da própria Faculdade e bolseiros, designadamente da Fundação de Ciência e Tecnologia (FCT), sob várias modalidades de bolsa que, parece ser verdade, já têm servido para contratar bolseiros para tarefas administrativas ou próximas da escravatura, mas também podem recompensar funções de coordenação equiparadas a categoria de carreira, como aquela para a qual Raquel Varela estaria a concorrer quando rebentou a recente bernarda. Tanto quando posso depreender do que é publicado, o Instituto é igualmente parte em contratos de investigação por encomenda realizada pelas suas equipas(v).

Facebook

Coordenadora de uma das cinco actuais equipas de investigação do IHC Raquel Varela, que se doutorou no ISCTE-IUL mas tem investigado no IHC desde 2011 e prestou recentemente provas de agregação na UNL, em que, vem insistindo, foi aprovada por todos os membros do júri, que terão sido Marcel van der Linden, ex-Director do Instituto de História Social de Amesterdão, que arguiu a aula pública sobre história global do trabalho da revolução de 1974-1975 (terá Raquel Varela repetido a sua tese de 2010 sobre a lei da greve de 1974 e os comunistas alinhados com a URSS ?), Francisco Caramelo, João Paulo Oliveira e Costa, Fernando Rosas, que arguiu o programa da unidade curricular, Maria Fernanda Rollo e Valério Arcary, que arguiram o Curriculum Vitae, Manuel Carlos Silva e António Costa Pinto, este último seu orientador de doutoramento.(vi) Se ativermos a que Fernando Rosas foi presidente do IHC e Maria Fernanda Rollo também o foi antes dele, a candidata ao título académico de Agregada estava, pode dizer-se, em casa. E aparentemente, contava-se que Raquel Varela iria, por um lado, indicando novamente o IHC como instituição de acolhimento, candidatar-se a uma bolsa que, se alcançada, lhe daria acesso a uma remuneração como investigadora coordenadora, e simultaneamente poder concorrer a um concurso para Professor Auxiliar de História Contemporânea com um perfil de habilitações ajustado(vii).

Deixando de lado o envolvimento do Público e do Diário de Notícias na divulgação da situação que veio a ser criada – que não percebi se deve a uma procura de notícias sensacionalistas sobre as Universidades ou sobre figuras públicas – não me parece que, pesem embora as ameaças de Raquel Varela, haja grandes divergências sobre os factos: a Direcção do IHC manifestou dúvidas sobre o CV que Raquel Varela apresentou para o concurso da FCT e quando esta chegou ao contacto directo com a Direcção do IHC comunicou a sua desvinculação do Instituto, sendo que a referida Direcção, tendo presente a desvinculação, considerou que devia fazer o mínimo de divulgação do assunto. Mas Raquel Varela promoveu a saída do seu grupo de investigação do IHC e, se bem percebi, considera que ela e o grupo devem permanecer vinculados à Faculdade, fora do IHC.

A Direcção da Faculdade, que passou a ser assegurada por um Professor de Sociologia (a candidata de História, Maria Fernanda Rollo, perdeu a eleição) estará a tentar evitar a continuação na praça pública de um debate desprestigiante. Mas, concordando-se que a decisão final será do júri da FCT, será que pode dar à Direcção do IHC ordem para fazer o Instituto figurar como instituição de acolhimento numa candidatura instruída com documentos com cuja veracidade não concorda?

 

Notas

(i) História Política do Partido Comunista Português durante a Revolução dos Cravos (1974-1975) , ISCTE-IUL, 2010, editada como História do PCP na revolução dos cravos na Bertrand em 2011.

(ii) Tenho-me visto confrontado com a indicação de que esta autora seria “trotskista” mas julgo que se não define como tal.

(iii) Espero que não esteja incluído nas publicações de Economia o lamentável texto elaborado com Susana Peralta, Paulo de Morais e outros a propósito do OE 2021 e a cuja argumentação Paulo de Morais voltou no Correio da Manhã de 17 de Outubro de 2021.
OE para 2021 – Um novo psicodrama orçamental

(iv) Raquel Varela terá estado ligada a um grupo de reflexão sobre a situação da Autoeuropa e o seu grupo de investigação assegurou, creio, um bastante falado estudo sobre o burnout na profissão docente.

(v) Faço estas referências porque alguns dos jornalistas que se têm “atirado” ao “caso Raquel Varela” têm uma ideia da organização das Universidades que parece não captar estas situações.

(vi) As provas foram realizadas via zoom, e o programa em que me estou a basear chegou-me depois.

(vii) Cheguei a ver este curioso Edital, que esteve publicado na Secção de Oportunidades do Site do IHC, mas foi retirado e não terá sido publicado em Diário da República.

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