Nos passados dias 10 e 11 de Outubro teve lugar no Porto um Congresso Internacional de História da Contabilidade, com o tema “As Dimensões Culturais e Sociais da Contabilidade” promovido pela Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) que contou com centenas de presenças de portugueses e estrangeiros e no qual foram apresentadas 40 comunicações, sendo 4 em sessões plenárias por académicos estrangeiros reputados, convidados para o efeito, e 36 em 4 “sessões paralelas”, todas muito participadas, que decorreram em três salas com boas condições. A OCC deve considerar-se de parabéns não apenas pela logística do evento, que decorreu na sua sede do Porto, mas pela projecção externa da iniciativa e sua qualidade científica.
A agora denominada Ordem dos Contabilistas Certificados já em fase anterior tinha concertado com alguns académicos, designadamente António Carlos dos Santos e Clotilde Celorico Palma, uma colaboração na área da Fiscalidade(i), recordo-me de ter estado presente numa iniciativa em Lisboa igualmente muito participada(ii).Dispõe actualmente de uma Comissão de História que segundo me foi dado perceber, integra ou colabora com académicos da Universidade do Minho, Instituto Politécnico do Cávado e do Ave e ISCTE-IUL e não sei de outras instituições. Uma breve pesquisa em alguns sites sugeriu-me que alguns dos académicos mais qualificados na área da Contabilidade – deveria, para ser exacto, escrever “académicas” – se doutorou em Inglaterra com reputados orientadores alguns dos quais apareceram agora a intervir como oradores convidados nas sessões plenárias do Congresso. As referidas doutoradas portuguesas têm progredido dentro das suas instituições apoiando como orientadoras ou co-orientadoras estudantes de mestrado ou de doutoramento das próprias instituições ou de outras instituições. E muitos dos correspondentes projectos de investigação dão lugar a comunicações ou artigos em que, como é prática assente, os seus nomes aparecem nessa qualidade.
Procurarei exemplificar: o tempo do Marquês de Pombal é geralmente considerado um tempo de progresso de contabilidade em Portugal, designadamente através da fundação da Aula do Comércio e da introdução da contabilidade de partidas dobradas designadamente através da obrigatoriedade da sua utilização pelo Erário Régio, criado em 1761. Olga Silveira que viria a estar profundamente envolvida no lançamento em 1997 do Plano Oficial da Contabilidade Pública (POCP) defendeu em 2000 uma tese de mestrado intitulada Da adopção da Contabilidade Digráfica na Administração Pública Portuguesa: Seus Antecedentes e Perspectivas Futuras, felizmente já disponível no repositório da Universidade de Lisboa, onde se menciona a Carta de Lei de 1761.
Surgindo agora Delfina Gomes, ao que julgo Professora Associada da Universidade do Minho, como Presidente da Comissão Científica do Congresso, uma consulta ao RCAAP – Repositórios Científicos de Acesso Aberto de Portugal mostra-a autora em 2007 de uma tese de doutoramento com o título Accounting Change in Central Government. The institutionalization of double entry bookkeeping at the Portuguese Royal Treasury (1761-1777). Ou seja, verifica-se que a lei foi aplicada, o que nem sempre acontece nas reformas portuguesas, e ficamos a compreender as condições que a inspiraram e o modus faciendi. Tem havido entretanto outros trabalhos académicos sobre o mesmo tema, mas é de notar que a utilização efectiva naquela época da contabilidade por partidas dobradas em unidades industriais sob o controlo do Estado, começa a ser documentado e estudado.
Foi um privilégio assistir durante o Congresso à apresentação por Cecília Duarte do estudo “A contabilidade no maior complexo industrial pombalino: o caso da Real Fábrica da Louça (1767-1776)” estudo que, explicou:
Introduz pela primeira vez na literatura o método e o sistema contabilístico adoptado pela Real Fábrica da Louça durante o período pombalino. Fundada em 1767, a Fábrica da Louça surge integrada no maior complexo industrial do seu tempo, a Real Fábrica das Sedas, apresentando-se como uma das suas Fábricas Anexas.
De modo geral as comunicações corresponderam à abertura do programa para ter em conta as dimensões sociais e culturais da Contabilidade.
Foi por exemplo seguida com muito interesse, por uma sala cheia a apresentação por Thomas Hermann, reportada à sociedade suiça, com o título, “Accounting Practices in a period of financial crisis. An analysis of Gottfried Keller’s Novel Martin Salander (1886) informed by New Historicism and Frye’s Satire Theory”.
Outras intervenções tiveram carácter marcadamente reflexivo, como será o caso da apresentação por António Dias (UTAD) da comunicação “The Social Dimensions of Accounting Research: a brief worldwide and Portuguese historical perspective”.
Assisti(iii) com alguma curiosidade à apresentação de duas comunicações exclusivamente orientadas para temas da história de Portugal:
“Masked costs in the case of Portuguese ‘Guerra do Ultramar’ (1961-1974)”, apresentado por Manuel Cunha (U. Minho)
Sinceramente, perante o título, pensei que poderiam estar em causa instrumentos de financiamento da guerra que não tivessem expressão no Orçamento Geral do Estado, particularmente ajudas encapotadas por parte de aliados “ocidentais”. Lembro-me aliás de que muito embora o Ministro das Finanças António Manuel Pinto Barbosa explicasse que a guerra era paga com o excedente de receitas ordinárias sobre despesas ordinárias e não com empréstimos, as regras de execução do OGE foram severamente apertadas e que a Direcção-Geral da Contabilidade Pública começou a publicar um Boletim Confidencial de divulgação restrita a alguns membros do Governo. Entretanto, no passado dia 12 de Outubro o jornal Público publicou um interessante trabalho sobre o Imposto Extraordinário de Defesa e Valorização do Ultramar , votado anualmente, cuja cobrança se revelou pouco pacífica e que continuou a ser cobrado muito depois do fim da guerra. “O imposto da guerra colonial que não morreu com o 25 de Abril”.
No entanto, pelo que foi dito na apresentação e no “Abstract” publicado estão em causa no projecto de investigação para além de efeitos económicos, efeitos sociais dos conflitos, tais como mortes e êxodos de população, e muito particularmente no caso português perturbações psicológicas ou físicas inerentes à participação na guerra e cuja identificação e quantificação da abertura de arquivos ou, em arquivos já abertos da possibilidade de tratamento de informação que originariamente não foi organizada para esse efeito.
No entanto o “Abstract” descreve “the Portuguese ‘Overseas War’ “ como “a confict that lasted from 1961 to 1974, between Portugal and her former colonies of Angola, Mozambique and Guinea (known as Guinea-Bissau after its independence in 1973”. Ora isto não é assim: a guerra da Independência das 13 colónias americanas opôs as colónias à Grã-Bretanha, mas no caso português as pessoas colectivas de direito público colónias / províncias ultramarinas e os seus orçamentos estavam envolvidos do lado de Portugal, e o envolvimento de parte das populações ao lado de Portugal, que posteriormente são ou não abrangidas por movimentos de êxodo tem de ser tido em conta. E como se tratam os civis cujas vidas foram sacrificadas ao longo dos conflitos?
Uma ideia bem intencionada mas que precisa de maior rigor na conceptualização.
“Mass Communication as a Strategy for Economic Growth and War Neutrality: The Case of Salazar Propaganda Posters”, apresentada por Fernanda Leão, do Instituto Politécnico do Porto.
Está em causa essencialmente o uso de cartazes para estimular a produção agrícola, durante o período de 1933 a 1949, aceitando a desejabilidade da vida rural, e em particular durante os anos da II Guerra Mundial, em que o abastecimento de géneros alimentícios ficou posto em crise.
Como foi explicado durante a apresentação da comunicação, os produtores eram instruídos a entregar parte da sua produção às “federations” e ao Estado.
Alguns dos congressistas, de origem italiana, assinalaram no debate que o fenómeno também se tinha verificado em Itália só que aí estava em causa o imperialismo de Mussolini e o esforço de guerra e não, como no Portugal de Salazar, a neutralidade com direito a comerciar com os vários lados do conflito.
Pode não parecer que isto é História da Contabilidade mas o crescimento neste período de Grémios, Federações e Organismos de Coordenação Económica traduziu-se num acréscimo de dimensão da rede de organizações públicas que deveriam vir a ser transferidas para as Corporações mas não o vieram efectivamente a ser. Quando muito verificaram-se fusões, mas os Organismos de Coordenação Económica passariam a partir de 1949 a constar de mapas do preâmbulo do Orçamento Geral do Estado, e este desenvolvimento certamente integra a história da contabilidade.
Voltarei a este tema.
Notas
(i) Ler no Tornado de 1 de Julho de 2020 “António Carlos dos Santos e a viragem na gestão do sistema fiscal (1995-1999)“
(ii) Na altura nem em Lisboa nem no Porto existia taxa turística. Agora uma deslocação com carácter científico ou simplesmente cultural dentro do país é tributada, o que me gera saudades do Salazar de 1928 que tentou suprimir entraves à livre circulação.
(iii) Por razões de ordem pessoal não consegui assistir às sessões plenárias, a cargo de oradores convidados.