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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Um gole de cale-se? Não, obrigada!

Christiane Brito, em São Paulo
Christiane Brito, em São Paulo
Jornalista, escritora e eterna militante pelos direitos humanos; criou a “Biografia do Idoso” contra o ageísmo.  É adepta do Hip-Hop (Rap) como legítima e uma das mais belas expressões culturais da resistência dos povos.

cálice 1

“Cálice”, a música, foi composta por Gilberto Gil e Chico Buarque no feriado da Semana Santa em 1973. O refrão fala do cálice de Cristo, mas o que se escuta é o cale-se da ditadura. O que poucos percebem é que todo cale-se vem junto com um cálice de sacrifício para tomar. Por isso é urgente combater a nostalgia da ditadura no Brasil e do fascismo em todo o mundo.”

 

Em um sábado de aleluia, Gilberto Gil foi à casa do Chico (Buarque) compor uma letra. Na longa tarde e noite, os amigos ritualizaram uma malhação de Judas musical.

O Gil tinha a ideia, há dias, rondando o seu pensamento. O Chico tinha a boa vontade de sempre com os amigos e a arte, além da vista para a lagoa Rodrigo de Freitas — de onde emergiu “o monstro” de uma das estrofes — e o fernet, que serviu para o Gil. O gosto amargo da bebida foi para outra estrofe do “Cálice”.

A música evoca a dor do sacrifício, de Cristo, e o pai que impõe a cruz sem remorso. Acabou por traduzir a dor do sacrifício de quem lutava contra a tirania do sistema político. E soou, em ouvidos atentos, como o “cale-se” dos tempos da ditadura.

A música, que seria apresentada pela dupla em um show com outros artistas da Phonogram (atual Universal), em 1973, foi censurada. Por motivos que envolvem até memória do exílio, Gil também a censurou internamente, diz que até hoje não consegue cantá-la, “a melodia é tristonha”, alega.

Milton Nascimento gravou em 1978, quando a censura liberou, e tornou-se tão dono do cálice que ganhou, com a interpretação magistral, simbólicos direitos de autoria.

Em 2011, o Criolo pediu licença ao Chico e ao Milton para cantá-la em versão rap, num boteco, com letra improvisada que expôs a violência e as dores da periferia excluída.

O repente emociona, especialmente a estrofe final, na qual Criolo tenta e não consegue disfarçar uma trava na língua: será uma lágrima ou duas marejando seus olhos? Ele virou o rosto para a câmera.

O vídeo foi para o Youtube e chegou até o velho Chico, que não tem nada de velho, anda acelerando com os motores ligados a mil e explorando a internet com mais avidez do que os primeiros astronautas que desembarcaram na lua.

Com este pique, o Chico estava justamente lançando uma turnê musical pelo país, após cinco anos fora dos palcos, e deslumbrou seu fiel “eleitorado” quando abriu o primeiro show da série, em Belo Horizonte, cantando o rap que o Criolo Doido fez para “Cálice”.

Sabe-se que Chico tirou do repertório ao vivo essa música e “Apesar de você” há décadas, por serem muito ligadas ao período da ditadura. Mas não causa espanto ele finalmente ter retomado o cálice, desta vez servido pelo Criolo Doido, que teve a sacada de que a música não passará.

O cálice de 2015

O Brasil de governos eleitos nas urnas tem pelo menos duas grandes vantagens em relação à ditadura do passado. A primeira é que podemos falar contra tudo e todos, nas redes sociais e nas ruas, apesar da truculência policial.

A segunda é que a punição de políticos e empresários corruptos vem se tornando exemplar. Temos presenciado a prisão de intocáveis e a investigação levada a extremos inimagináveis.

Preservar a liberdade e exigir a condenação dos corruptos é fundamental.

Não nos livramos do cálice da impunidade, que ainda somos obrigados a beber em grande quantidade, mas pelo menos não temos que aguentar o cale-se imposto por decreto arbitrário que condena inocentes a prisões, desaparecimentos e até morte por tortura.

(Nota: a autora escreve em português do Brasil)

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