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João de Sousa

Sábado, Novembro 2, 2024

Um governo de rachadinhas e offshores

A crise vivida pelo País sob o governo Jair Bolsonaro pode ter imposto um martírio para a maioria dos brasileiros – mas não necessariamente para o ministro da Economia, Paulo Guedes, nem para o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto. Conforme vazamentos do caso Pandora Papers, revelados no domingo (3) pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), os dois gestores têm participação milionária em empresas offshores localizadas em “paraísos fiscais”.

A princípio, pode parecer que não há ilegalidade na prática. A legislação permite que brasileiros sejam donos de empresa em outros países, desde que declarem o fato à Receita Federal. Nesse ponto, Guedes e Campos Neto – egressos, ambos, do mercado financeiro – alegam inocência, já que informaram a existência de suas respectivas offshores no imposto de renda. Para não sofrerem tributação no País, basta que essas empresas não distribuam lucro nem remetam dinheiro de volta ao Brasil.

O que pesa contra eles, porém, é o conflito de interesses. O artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal veda “investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas”. Aqui, não resta dúvida: Paulo Guedes, em especial, deve explicações.

Um exemplo: em julho de 2020, o CMN (Conselho Monetário Nacional) modificou as normas sobre patrimônios mantidos em offshores de brasileiros. Os homens à frente tanto do Ministério da Economia quanto do Banco Central são membros desse Conselho – o ministro, a propósito, é seu presidente. Portanto, Campos Neto e Guedes tinham informações privilegiadas e podiam legislar em causa própria.

O presidente do BC chegou a dissolver sua offshore após a resolução do CMN. Guedes, nem isso. O ministro é sócio da Dreadnoughts, a lado da esposa, Maria Cristina Bolivar Drumond Guedes, e da filha, Paula Drumond Guedes. A empresa está sediada nas Ilhas Virgens Britânicas e, ao que tudo indica, manteve atividade mesmo com a resolução do Conselho. Até o momento, Guedes não desmentiu claramente os rumores de que a Dreadnoughts pode ter feito investimentos nos últimos dois anos.

A credibilidade de Paulo Guedes também sai abalada. Por que o ministro, um dos mais notórios críticos de incentivos fiscais para empresas brasileiras, detinha, em 2015, US$ 9,5 milhões (cerca de R$ 51 milhões, em valores atuais) num paraíso fiscal? Países como Andorra, Bahamas, Ilhas Cayman e Ilhas Virgens Britânicas são chamados de “paraísos fiscais” justamente por causa desses incentivos – vantagens tributárias que reduzem ou até zeram os impostos de empresários e investidores.

Além disso, a burocracia para movimentações financeiras é menor – há pouca ou quase nenhuma rigidez para dados sobre origem e destino do dinheiro. Não por acaso, as investigações da Pandora Papers indicam 1.897 brasileiros com offshores em “paraísos fiscais”, incluindo 66 dos maiores devedores de impostos no País, que, juntos, somam cerca de R$ 16,6 bilhões inscritos na Dívida Ativa da Receita Federal.

Curiosamente, para custear o Auxílio Brasil – versão eleitoreira do Bolsa Família –, o governo Bolsonaro acaba de aumentar a tributação sobre movimentação financeira. Decreto assinado pelo presidente em setembro elevou as alíquotas do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) sobre operações de crédito, câmbio e seguro, títulos e valores mobiliários. As empresas e contas em “paraísos fiscais”, no entanto, continuam isentas.

Por fim, Guedes é beneficiário de sua política cambial alucinante, que provocou uma forte desvalorização do real ante o dólar. Em 2 de janeiro de 2019, data da posse do ministro, a moeda norte-americana estava cotada em R$ 3,85. Seu valor chegou de R$ 4 ainda em 2019 – e ultrapassou o patamar R$ 5 em 2020, no início da pandemia de Covid-19. Nesta quarta (6), o dólar era comercializado a R$ 5,50 – maior cotação da moeda nos últimos seis meses. Centrais sindicais e entidades sindicais ligadas aos servidores públicos estimaram que o patrimônio de Guedes valorizou ao menos R$ 14 milhões desde sua chegada ao ministério.

Tamanhas suspeitas levaram o procurador-geral da República, Augusto Aras, a instaurar uma “notícia de fato” (investigação preliminar), pedindo esclarecimentos ao homem forte do governo Bolsonaro. Se as explicações não forem convincentes, Aras pode pedir a abertura de um inquérito no STF (Supremo Tribunal Federal). Ao mesmo tempo, o procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Lucas Furtado, entrou com representação no STF a fim de apurar irregularidades no caso.

Guedes também se tornou o primeiro ministro da Economia a ser convocado a depor no plenário da Câmara dos Deputados – a sessão deve ocorrer na próxima semana. Foram 310 votos favoráveis ao requerimento de convocação e apenas 142 contrários, numa demonstração de que a falta de confiança no gestor não se restringe aos partidos e parlamentares oposicionistas.

“O governo Bolsonaro deve explicações ao Brasil”, resume o deputado federal Renildo Calheiros (PCdoB-PE), líder da bancada comunista na Câmara. “Por ser uma convocação, o ministro é obrigado a comparecer. É preciso esclarecer se houve conflito de interesses. Uma das suspeitas a serem apuradas é se a política de desvalorização do real elevou o patrimônio da empresa de Guedes.”

Para Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da Oposição e autor do requerimento, “o ministro transgrediu uma regra clara e explícita”, beneficiando-se pessoalmente. “Queremos saber por que ele mantém seus recursos pessoais em moeda estrangeira, em dólares, enquanto a economia do País afunda. “Há claro conflito de interesses, quando a moeda brasileira se desvaloriza, diante de moedas estrangeiras como o dólar, é nesta moeda que estão investidos os recursos do ministro da Economia”, diz Molon.

O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) foi, ainda, à Comissão de Ética Pública (CEP) da Presidência da República para cobrar o afastamento do ministro e do presidente do BC. Esse conjunto de investigações vai indicar se Guedes cometeu ou não cometeu improbidade administrativa. Mas já estão claros os interesses escusos de Bolsonaro e de seus auxiliares mais próximos. Com rachadinhas, esquemas e offshores, eles são bem-sucedidos em multiplicar as próprias fortunas, enquanto afundam o Brasil numa crise econômica sem fim.


Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

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