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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Um lado desconhecido de José Saramago

Carlos Luna, em Estremoz
Carlos Luna, em Estremoz
Professor de História, Investigador

Dificilmente, e só quase por má-fé ou sectarismo, se poderá negar que José Saramago foi um genial escritor. Por muitos defeitos que pudesse ter tido, criou um universo ficcional de extraordinária grandeza, e acabou por ser um dos maiores nomes portugueses conhecidos no mundo inteiro. Quem o leia com um mínimo de objectividade, compreenderá isso.Uma das suas facetas mais polémicas era o seu iberismo, à mistura com algum pessimismo sobre o futuro de Portugal.

E, todavia, esse mesmo pessimismo era, em si, profundamente português, algo de que talvez nem o próprio Saramago se tivesse dado inteiramente conta.

Afinal, ele reflectia todas as contradições, todas as angústias, todos os ressentimentos comuns ao povo luso.

Não resisto a focar um aspecto, que parece contraditório com o seu iberismo, e que consiste nas suas referências a Olivença. Uma delas é numa entrevista ao “El Semanal” (Cádiz), em 28 de Maio de 1995, em que, ao ser interrogado sobre a forma como via o contencioso de Olivença, respondeu que «o peso da história tem mais autoridade que a lógica geográfica”, e que “vejo que Olivença tem as mesmas possibilidades de incorporar-se a Portugal do que o “Peñon” de Gibraltar de se incorporar em Espanha, isto é, muito poucas”.

No fundo, Saramago reflecte aqui o que já dissera na “Jangada de Pedra” (1986, e cito:«Dois Cavalos parou também, era no cortejo o único automóvel português, isto é, de matrícula portuguesa, ver Gibraltar perdido no mar não lhe aquece nem arrefece, a sua mágoa histórica chama-se OLIVENÇA e este caminho não leva lá.»).

No seu livro “Viagem a Portugal”, na página 339, outra referência: quando numa sombra se detém para consultar os mapas, repara que na carta militar que lhe serve de melhor guia não está reconhecida como tal a fronteira face a Olivença. Não há sequer fronteira. Para norte da Ribeira de Olivença, para sul da Ribeira de Táliga, ambas do outro lado do Guadiana, a fronteira é marcada com uma faixa vermelha tracejada: entre os dois cursos de água, é como se a terra portuguesa se prolongasse para além do sinuoso traço azul do rio. O viajante é patriota. Sempre ouviu dizer que Olivença nos foi abusivamente sonegada, educaram-no nessa crença. Agora a crença torna-se convicção. Se os serviços cartográficos do exército tão provativamente mostram que Portugal, em trinta ou quarenta quilómetros, não tem fronteira, então está aberto o caminho para a reconquista, nenhum tracejado nos impede de invadir a Espanha e tomar o que nos pertence. O viajante promete que voltará a pensar no assunto. Mas uma coisa teme: é que não falte o tracejado nas cartas militares espanholas, e que para eles seja o assunto caso arrumado. Para se preparar, o viajante irá estar presente nas próximas reuniões das comissões mistas para as questões fronteiriças. Ouvirá com atenção o que se discute, como e para quê, até à altura de puxar do mapa que afervoradamente guarda e dizer: “Muito bem, vamos agora tratar desta questão de Olivença. Diz aqui o meu papel que a fronteira está por marcar. Marquemo-la com Olivença da nossa banda.”. Morre de curiosidade de saber o que acontecerá.”».

Este comentário final de Saramago é claramente negativo sobre as pretensões portuguesas, mas omite ou esquece algo que em Saramago é constante, isto é, de que o que importa é a justiça, a razão do que se defende, e não o tamanho do oponente. Foi isso que o escritor defendeu na Palestina, e defendeu a propósito de Timor. Para sua honra! E, pasme-se… Saramago não foi a Olivença! Se o tivesse feito, perante a riqueza monumental (portuguesa) que encontraria, que belas páginas este seu livro não teria!

Por ironia, até no “Memorial do Convento” Olivença é citada: Baltasar Mateus, o Sete-Sóis (…) mandado embora do exército (…) depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala em frente de Jerez de los Caballeros, (…) e debandada dos vivos, acossados pelos cavalos que os espanhóis fizeram sair de Badajoz. A Olivença nos recolhemos, com algum saque que tomámos em Barcarrota(…)»

O Iberismo de Saramago só o trai neste ponto devido a uma notícia tendenciosa do Jornal “El País” de 29 de Junho de 1994. Essa notícia considerava alguns visitantes portugueses de Olivença como “invasores” dos “Amigos de Olivença”, não obstante os protestos dos mesmos, que eram apenas aficcionados tauromáquicos, e que até se mostravam algo iberistas. Mário Ventura Henriques, já falecido, demonstrava no Diário de Notícias, salvo erro de 31 de Junho, o ridículo da notícia, e como se forjara uma mentira para obter fins políticos. Infelizmente, Saramago não leu essa mesma notícia, e o seu comentário no “Cadernos de Lanzarote/Diário II, 1996, págs. 144-145” pressupõe que o “El País” dissera a verdade, pelo que ataca ferozmente os “invasores”… que nunca o foram, nem quiseram ser, ou imaginaram ser tomados como tais. Será bom que, em edições futuras deste texto, ou deste livro de Saramago, se chame a atenção para o erro da fonte!

Isto não põe em causa, nem a validade das observações e comentários de Saramago sobre muitos aspectos da vida portuguesa, nem o facto de, como português que era, sentir que Olivença era uma ferida, digamos, ibérica.

 

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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