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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Um mundo economicamente bipartido, mas geopoliticamente multipolar

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

A nova ordem internacional pode ser descrita como multipolaridade geopolítica dentro de um sistema capitalista bicéfalo.

É cada vez mais evidente que as relações internacionais estão a tornar-se mais caóticas; este verdadeiro indicador de uma mudança, que se manifesta quer pelos conflitos abertos quer pelas guerras tecnológicas é uma situação normalmente verificada em períodos de transição, quando o antigo sistema está a ser desmantelado e ainda não existe uma estrutura capaz de o substituir. O sistema unipolar reivindicado pelos EUA na sequência da Queda do Muro de Berlin está em rápida desagregação e enquanto tardam em serem encontrados os novos equilíbrios que o substituirão, vão-se formando e extinguindo novas dinâmicas que explicam a actual turbulência.

A deslocação do eixo Europa-Atlântico para a área Ásia-Pacífico é um dado irrefutável que só a miopia ocidental (e em especial a europeia) ainda pode questionar. A contestação ao secular monopólio ocidental do progresso tecnológico, encarnada primeiramente pelo Japão e depois pela Coreia do Sul (duas economias profundamente ocidentalizadas), está a ser concretizada pela China e por Taiwan (território alvo de acesa disputa entre chineses e americanos) apesar dos esforços ocidentais para o torpedear.

A relação sino-norte-americana evoluiu consideravelmente no último meio século, apresentando-se hoje radicalmente diversa da imagem que Henry Kissinger dela nos quis deixar e a Comunidade do Pacífico (que refere no seu livro Da China) é cada vez mais uma miragem perante a concepção norte-americana da China como um rival global, à qual não será estranho o facto da UE representar uma grande economia sem poder militar, de a continental Rússia aliar ao poderio militar uma economia fraca, pelo que só a China pode competir com eles em todos os domínios.

O absurdo de ter incentivado a deslocalização da produção industrial ocidental para a China, que a leva hoje a disputar taco a taco o lugar da maior economia mundial com os EUA e agravou consideravelmente o défice comercial norte-americano, tenta ser agora contrariado por uma política de aumento das tarifas aduaneiras e de incentivos para atrair investimentos, especialmente em tecnologias de ponta que afecta principalmente os seus parceiros ocidentais da Europa. Já a China, cujas empresas estão a assumir a liderança mundial em sectores como o das telecomunicações, das energias renováveis e dos veículos eléctricos, está ainda a conseguir competir noutras áreas de ponta, como a inteligência artificial e a exploração espacial, e a marcar pontos no campo financeiro graças à crescente internacionalização da sua moeda (yuan) e ao abalo do sistema petrodólar, além de que organizações lideradas pela China, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas ou o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, acentuam o bicentrismo do sistema capitalista ao contrários das suas congéneres ocidentais, o Banco Mundial e o FMI.

A ideia da multipolaridade assume especial relevo no capítulo militar, onde, esquecida que parece a “guerra contra o terror”, o inimigo do Ocidente deixou de ser o “eixo do mal” e voltou a ser uma Rússia cuja debilidade económica é julgada como potencial garantia de vitória; mas nem o conflito na Ucrânia nem a reacendida crise israelo-palestiniana escondem o confronto indirecto entre norte-americanos e chineses, num contexto onde estão a ganhar maior destaque os sistemas de armas aéreas de nova geração (drones e mísseis hipersónicos), que até pela sua diametralmente oposta aplicabilidade no terreno lançam novos desafios em áreas como a do desenvolvimento e da sustentabilidade de produção

Confirmando aquela ideia de multipolaridade, veja-se como a China tem equilibrado a intensa ajuda dos EUA à Ucrânia e a Israel, com um significativo apoio financeiro a Moscovo e alguma protecção indirecta à Palestina, por via do Irão. Estes conflitos mais ou menos locais, podem ter consequências globais que ultrapassam a geopolítica regional, afectando até as rotas comerciais internacionais, como se viu com o quase encerramento do Mar Vermelho no quadro da intervenção de Israel em Gaza e numa acção que confirma a importância dos novos vectores de armamento mencionados e os interesses das potências (mundiais e regionais) envolvidas.

À luz dos actuais conflitos pode até antecipar-se que o mundo caminha paulatinamente em direcção ao confronto final entre os EUA e a China, confronto que não significará obrigatoriamente um conflito militar directo, tanto mais que parece cada vez mais evidente a emergência de outros intervenientes com capacidade para influenciar e até determinar o resultado final. A propagação de conflitos regionais, incluindo aqueles onde os seus intervenientes actuam como proxis de alguma potência, confirma a tendência para uma multipolaridade onde chineses e norte-americanos poderão ser dominantes – até porque na realidade o são em todos os elementos de poder – mas não totalmente hegemónicos, contribuindo para fundamentar a ideia da existência de uma ordem internacional multipolar, do ponto de vista geopolítico, dentro do sistema capitalista bipolar.

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