Em foco, nas teses 3 a 7, estão questões tão importantes como a evolução do sistema representativo, das formas de comunicar, da matriz ideológica, da emergência do indivíduo enquanto protagonista multidimensional (prosumer) e do novo relacionamento entre a economia e a política.
Deixo-vos então com este magno contributo para um debate tornado mais urgente a cada dia pelos tempos de incerteza e de ascensão de várias forças extremistas da direita que se vêm multiplicando um pouco por todo o lado.
João de Sousa
Contributo para um debate à esquerda – 2
por João de Almeida Santos
I. TESES
TERCEIRA TESE. O sistema representativo clássico está hoje sujeito a exigências que já não cabem no interior da sua clássica estrutura formal. Não é por acaso que muitos falam de democracia pós-representativa (Alain Minc), pós-eleitoral (Pierre Rosanvallon), deliberativa (Habermas), participativa ou mesmo de democracia digital. Se antes isto poderia significar apenas fecunda imaginação teórica, hoje já representa um processo real. Vejamos, por exemplo, a tese de Rosanvallon. O que ele nos diz é que temos de fazer três operações no interior do universo democrático:
- «inventar formas não eleitorais de representação» (palavras suas);
- assumir a democracia como uma «forma de sociedade», ou seja, como algo mais do que um simples regime político;
- relançar a cidadania para além da sua mera expressão eleitoral.
Portanto, formas não eleitorais de representação, democracia como forma metapolítica de sociedade e cidadania pós-eleitoral (que não se reduza, portanto, a mera função do sistema político para fins eleitorais).
Trata-se de uma tentativa de captar o que já flui no interior dos sistemas democráticos e que já não cabe no interior dos seus módulos formais. Ou seja, a sociedade moderna já encontrou canais e formas de expressão política que trasbordam as margens do clássico sistema representativo, agindo, depois, sobre ele, com uma tal «pressão ambiental» que tem vindo a gerar aquilo que eu designo como «discrasia da representação». Emerge, assim, a chamada política deliberativa.
Por várias razões:
- A política democrática, no plano da legitimidade do poder, deslocou o seu centro geométrico das estruturas representativas formais não só para o espaço partidário, mas também para o espaço público mediatizado, ou seja, para um não-lugar (o voto serve sobretudo para designar representantes, subalternizada que está a função de legitimaçãopara o mandato); a legitimidadeé formalmente de mandato, mas passou a ser politicamente flutuante, não se confundindo, todavia, com a chamada legitimidade de exercício, conceito mais ambíguo e menos denotativo;
- fê-lo em perfeita sintonia discursiva com o poder mediático, configurando o seu sistema operativo à medida das exigências daquele, sem cuidar de preservar a sua autonomia e abrindo, pelo contrário, espaço ao protagonismo e a um desmesurado poder funcional dos mediasobre o coração do sistema político e institucional;
- deste modo, permitiu que a soberania do cidadãofosse confiscada ou capturada por instâncias de intermediação, resultando daqui uma evidente discrasia da representação política e uma subalternização da própria cidadania;
- portanto, duplo desvio da soberania individual,na fase da chamada democracia do público: para os partidos (por exemplo, no plano da propositura de candidatos e listas); e para os media, no plano da representação do real, a que, no plano político, correspondeu uma captura do discurso, da atenção social e do processo de agendamento.
- Ora só se pode compreender a ideia de relançamento da cidadaniase ela representar, em primeiro lugar, uma reapropriação, pelo cidadão, da soberania confiscada ou capturada quer pelos directórios partidários (partidocracia) quer pelos directórios mediáticos (mediocracia), para não falar dos directórios judiciais, em crescente e perigoso protagonismo político (no mais benigno dos casos, o protagonismo do Tribunal Constitucional, estranhamente promovido pelos próprios partidos políticos); e, em segundo lugar, e por consequência, uma reposição do valor de uso do voto, designadamente através de um reforço da «cidadania activa» a montante e a jusante dos processos eleitorais. Porque se alguma vantagem houve na deslocação do centro da deliberação política para esse não-lugar que, numa primeira fase, acabou por se confundir com o establishment mediático, verdadeiro guardião do espaço público (ou gatekeeper), ela exprime-se agora, com a sociedade digital e em rede, na possibilidade de emergência do cidadão individual como agente político directo (Prosumer), capaz de se auto-organizar e se automobilizar politicamente (com uma lógica diferente das organizações políticas tradicionais) e com capacidade efectiva de influenciar a “agenda pública”, tantos são os canais disponíveis de acesso a esse novo e gigantesco não-lugar, o espaço público deliberativo, sobretudo através da Rede.
- Não é por acaso que, como veremos, os novos movimentos (Syrisa, M5S, Podemos, Ciudadanos, etc., etc.) falam, todos, de devolução do poder ou da soberania à cidadania. E que Castells, a propósito da Rede, fala de “democracia de cidadãos”, sucedânea da “democracia do público” e da “democracia de partidos”.
- Aqui sim, teríamos uma democracia deliberativa, praticável a partir desse não-lugar que é a Rede, no seu sentido mais amplo e não meramente instrumental (“no sense of place” – fórmula que já Meyrowitz usava para designar a televisão), centrada num cidadão não dependente nem dos «gatekeepers» mediáticos nem dos comunitarismos militantes e resistente ao exclusivismo e ao fechamento dos directórios partidários. A verdade é que nunca como hoje os cidadãos tiveram tantos meios de livre acesso ao espaço público, enquanto prosumers, produtores e consumidores de política e de comunicação, embora reconheça que também nunca como hoje os poderes fortes organizados tiveram tanto poder simbólico, tantos meios para agir instrumentalmente sobre as consciências, colonizando-as [1]. É aqui que reside a viragem e os socialistas devem assumi-la com a radicalidade que se espera de quem deve olhar mais para o futuro do que para o passado.
QUARTA TESE. Deixou, pois, de ter sentido que a política continue a olhar para a esfera da comunicação numa lógica puramente instrumental e de spin doctoring, olhando para os media como meros veículos de informação, comunicação, propaganda ou marketing. Não só porque eles próprios se tornaram protagonistas políticos e poderosos agentes económicos portadores de concretos interesses (não respeitando os códigos éticos, aceites e/ou elaborados por eles próprios), mas também porque estão em sérias dificuldades perante a ruptura do próprio modelo do poder comunicacional. Mais do que meios de comunicação ou um espaço mediático, o que hoje temos é um gigantesco espaço público intermédio com dimensão ontológica: a Rede. Ou seja: a sociedade de massas deu lugar à sociedade digital e em rede.
E, portanto, a mass communication deu lugar à mass-self communication (Castells), à comunicação individual de massas, onde o indivíduo singular ou, se quiserem, o cidadão, tem condições para um protagonismo como nunca teve. E aqui está a razão por que devemos transitar da lógica comunitária e da lógica de massas para a lógica da “mass-self communication”, onde a centralidade do indivíduo singular é evidente.
QUINTA TESE. Nesta nova fase evolutiva dos sistemas sociais e da democracia, ganha novo significado e enquadramento a questão da hegemonia, que tem andado tão arredada do debate político e dos horizontes do establishment partidário. E, todavia, esta questão é central num mundo cada vez mais simulacral, fragmentário, imprevisível e rápido. Só que esta questão não deve agora ressuscitar a fórmula ideológica de matriz comunitária, devendo, isso sim, repor-se no sentido da reconstrução de uma mundividência estruturada analiticamente, de uma cartografia cognitiva e ético-política virada para o indivíduo singular.
Eu diria, pois, uma mundividência ético-política que exprima claramente a orientação ideal do socialismo democrático ou da social-democracia e na qual a maioria se possa rever. Não se trata de narrativas ideológicas, mas de cartografias cognitivas (Fredric Jameson) que ajudem o cidadão a orientar-se analítica e criticamente na sociedade, certamente com bússolas valorativas, mas também com instrumentos cognitivos e analíticos de largo espectro cultural e civilizacional.
SEXTA TESE. As próprias ideias de intermediação política e de intermediação comunicacional, com delegação de soberania nas grandes organizações políticas e comunicacionais por parte da cidadania, estão em crise devido à emergência deste indivíduo singular como novo protagonista e centro complexo de informação, de decisão e de intervenção, para onde convergem múltiplas e diferenciadas pertenças: “Prosumer”. O processo de desintermediação da política e da comunicação é progressivo e tenderá a afirmar-se cada vez mais quer como afirmação do indivíduo singular quer como transformação qualitativa das relações entre as organizações (designadamente partidos e media) e a cidadania.
SÉTIMA TESE. Mas, a par da emergência de um novo tipo de cidadania e do protagonismo do indivíduo singular, algo de novo também está a surgir nas relações entre política e economia. Hoje, como afirma Wolfgang Streeck, em Gekaufte Zeit [2], já nos encontramos perante, não uma “constituency”, uma única fonte remota de soberania, mas perante duas: a dos cidadãos e a dos credores. Ou seja, a política já não se pode limitar a agir com os olhos postos na nova cidadania, mas também deve ter em consideração os grandes credores que financiam a dívida pública. E isso, digo-o desde já, deveria levar os decisores políticos a promover uma efectiva viragem no financiamento da dívida pública.
Ou seja, a desenvolver uma política activa para a poupança através dos instrumentos reguladores de que o Estado dispõe (por exemplo, em Portugal, através da Agência de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público – IGCP-E.E.E. ou da Caixa Geral de Depósitos), deixando a política de juros de estar irremediavelmente capturada pela banca privada. Se tem de haver credores, e agora com o estatuto de nova “constituency”, então que eles se identifiquem cada vez mais com a cidadania. Ou seja, a nova cidadania não só se deve exprimir no plano comunicacional e político, mas também no plano financeiro. O que está em linha com a nova visão que estou a tentar delinear.
E, deste modo, relativizar-se-ia também o poder das agências de rating, na medida em que se relativizava o poder dos credores internacionais. Ora aqui está, no meu entendimento, uma boa linha de demarcação relativamente às forças neoliberais e conservadoras ou neoconservadoras.
O Estado como regulador financeiro e promotor activo de independência financeira relativamente aos mercados internacionais de capitais. De resto, isto já foi praticado há bem pouco tempo e com bons resultados. E verifica-se também nos países que têm a dívida pública ancorado essencialmente nos recursos financeiros internos do país.
[1] Veja-se Santos, J. A. (2013). “Cosmopolis. Un nuevo paradigma para el siglo XXI”. In joaodealmeidasantos.com. E Santos, J. A. (2010). «Medios y Poder: cambios y perspectivas en las relaciones entre política, medios y comunicación». In Timoteo Álvarez, J. (2010a). Muchas voces. Un mercado. La industria de la comunicación en Iberoamérica. Perspectivas. Madrid: Editorial Universitas, pp. 257-274.
[2] Streeck, W. (2013). Gekaufte Zeit. Die vortragte Krise des democratischen Kapitalismus. Frankfurt a. Main: Suhrkamp (Ed. port. 2013. Coimbra: Actual).
Nova versão, actualizada. Título e Apresentação em espanhol. Texto em língua Portuguesa. Publicado no Blog sobre comunicación, contenidos y redes de Tendencias21. Dezembro de 2016