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João de Sousa

Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Um novo paradigma para o socialismo 3

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT


Neste documento o autor expõe as Teses de 8ª à 13ª, designadamente o modelo social europeu e o estado social, a constitucionalização da União, o multilateralismo, a lógica globalitária versus o cosmopolitismo crítico e integrativo, o poder diluído e a reconquista da cidadania e, por fim, a emergência do indivíduo a par da progressiva desintermediação da relação entre este e as instituições.

Mais uma reflexão a não perder, fruto de um trabalho aturado de investigação e de análise.

João de Sousa


Contributo para um debate à esquerda – 3

por João de Almeida Santos

I. TESES

OITAVA TESE. Esta situação tem directas implicações na autonomia do Estado e na forma como age em matéria social. Chegou, pois, o momento de deixar de assumir a ideia de “modelo social europeu” como dogma e de repensar o Estado social desde a raiz, mantendo firme, claro, a ideia de justiça social ou distributiva, ou seja, a ideia de que uma sociedade é melhor se garantir aqueles bens públicos essenciais que geram uma melhor cidadania em todas as suas dimensões. Neste sentido, a diferença relativamente à justiça comutativa dos liberais é muito clara. O mercado, funcionando numa lógica de curto prazo, nunca estará em condições de garantir todos os bens públicos essenciais, os bens transgeracionais, como os ambientais, por exemplo.

O desmantelamento da esfera pública e a mercantilização integral de todos os bens públicos ou sociais continua a não ser uma boa solução. Mas, por isso mesmo, chegou o momento de repensar radicalmente a filosofia que inspira o Estado social, ou seja, de o referir a cidadãos que já se encontram em condições de tutelar responsavelmente o seu próprio futuro, sem necessidade de confiar integralmente a sua tutela a uma burocracia que, depois, nem sequer é capaz de garantir o contrato social que subjaz à transferência de recursos para o Estado. Por exemplo, para fins de reforma (a famosa, recorrente e eterna questão da sustentabilidade financeira da Segurança Social)[1].

NONA TESE. Se é verdade que, por um lado, o financiamento da dívida pública através dos mercados financeiros internacionais provocou um reajustamento nos centros nucleares de decisão, fazendo entrar directamente novos protagonistas políticos exógenos à cidadania nacional, também é verdade que, por outro, muitas esferas de soberania foram também deslocadas para o espaço político da União, com directas consequências sobre a liberdade de acção dos governos nacionais. É, de resto, por isso que, em atmosfera de crise, muitos já propõem o regresso ao velho Estado-Nação e à moeda nacional (como Streeck, por exemplo).

E que outros, pelo contrário (como Habermas), propõem o reforço institucional da União e a assunção de políticas comunitárias em matérias que têm estado arredadas desta esfera. Neste aspecto, aos socialistas não é muito difícil marcarem o seu próprio terreno. A luta de Altiero Sinelli, um dos homens do Manifesto de Ventotene, sempre foi inspiradora. E não faria mal retomar a sua luta contra o predomínio das diplomacias nacionais na definição das políticas europeias e a favor da Constitucionalização da União e da construção de uma democracia e de uma cidadania verdadeiramente supranacionais. Esta orientação permitiria resolver o problema da convergência comunitária em matérias tão importantes como a fiscal e a da segurança e defesa, por exemplo.

DÉCIMA TESE. A política mundial sofreu uma profunda mudança com o fim do bipolarismo. Estamos agora perante um multilateralismo algo caótico, sem âncoras sólidas capazes de garantir paz e desenvolvimento. Começamos, assim, a assistir ao protagonismo, designadamente financeiro, de novas potências emergentes (China, Índia, Brasil, por exemplo), mantendo-se como âncora sólida os Estados Unidos, mas também a Rússia de Putin, com um significativo protagonismo internacional e com uma grande zona cinzenta de influência. Neste intervalo, e na ausência de uma clara delimitação de zonas de influência que possam ser “tuteladas” e negociadas diplomaticamente pelos agentes poderosos da cena internacional, detonam conflitos regionais e ameaças globais que alastram como mancha de óleo.

A China há muito que compreendeu que as finanças são o mais sofisticado e importante instrumento geopolítico (ou as finanças como “a continuação da política por outros meios”). A tradição socialista é também aqui muito clara nas suas orientações, sobretudo na defesa da paz e no direito dos povos à autodeterminação e à liberdade, ideias que devem estar cada vez mais ancoradas numa ideia avançada de Europa, em construção, no sentido de um efectivo reforço político e institucional. A Europa como protagonista mundial poderá ser decisiva para reorganizar o espaço político internacional, ajudando a neutralizar ameaças regionais que em tempos de globalização se tornam verdadeiras ameaças globais. Ela poderá ser também um poderoso instrumento de resposta eficaz à globalização de processos.

DÉCIMA PRIMEIRA TESE. Entretanto, e como nunca aconteceu no passado, a globalização já não se esgota no accionamento dos meios de comunicação tradicionais (dos transportes terrestres, viaturas ou caminho de ferro aos barcos, aos aviões), mas insinua-se cada vez mais como globalização digital de processos e conteúdos, através da Rede. O que exige, a quem não tem medo do futuro, a assunção de uma resposta global a problemas globais na óptica de um cosmopolitismo que sempre serviu de âncora ideal ao socialismo democrático. Uma coisa é a lógica globalitária (por exemplo, dos mercados, dos fundos de pensões ou das famosas EPZ, Export Processing Zones[2]), outra é a lógica de um cosmopolitismo crítico e integrativo, inspirado no racionalismo iluminista, que sempre inspirou os socialistas. De resto, a União Europeia é filha dele.

DÉCIMA SEGUNDA TESE. O poder tradicional está a conhecer uma rápida mudança de paradigma: do poder organizacional, centrado na eficácia e na lógica das grandes organizações, ao poder diluído, ou seja, a reconquista pela cidadania, sobretudo através da Rede, da soberania confiscada. Os partidos não podem, por isso, continuar encerrados nos seus mecanismos internos de selecção da classe dirigente nem podem continuar a ver o mundo como uma projecção auto-referencial, com o permanente risco de uma progressiva perda de poder para movimentos políticos de mobilidade variável capazes de a cada momento interceptar os fluxos eleitorais com os novos meios de auto-organização e de automobilização, TICs e redes sociais.

Movimentos que, de resto, podem ser facilmente colonizados, logo a partir da própria Rede. A introdução de primárias abertas para os reais centros de poder (concelhias, distritais, Secretário-Geral, no caso do PS), não sendo milagrosa, pode constituir um primeiro momento muito importante no processo de metabolização da nova natureza do poder centrada nos prosumers. A cidadania, sendo chamada a cooperar na selecção dos dirigentes partidários e nos candidatos a funções de Estado, poderá contribuir decisivamente para injectar sangue novo em organismos que se estão a tornar cada vez mais auto-referenciais e socialmente anémicos.

DÉCIMA TERCEIRA TESE. Bem sabemos que só os ricos se podem permitir um Estado pobre, como se dizia no Grundsatzprogramm do SPD aprovado em Berlim, em 1989. Mas não há dúvida de que não é possível continuar a atirar o emprego para cima do Estado, financiado por todos nós e alocando os recursos financeiros a uma gigantesca organização de serviços que tende a reproduzir-se por inércia. E também aqui os socialistas devem dar o exemplo com coragem. Com efeito, não é muito difícil compreender que a crise da esquerda tem muito a ver com a crise do Estado, por excesso de identificação daquela com este.

Sem deixar de ter na devida consideração esta ideia do programa do SPD e de recusar a ideia de Estado mínimo, está a tornar-se cada vez mais necessário desancorar a ideia de esquerda da ideia de Estado, tal como tem vindo a ser assumida. Por um lado, repondo a centralidade no indivíduo singular e, por outro, reconhecendo que, sendo os problemas cada vez mais globais, por isso, as soluções deverão ser cada vez mais supranacionais. O cosmopolitismo de que a esquerda do futuro se deve reivindicar encontra precisamente nesse indivíduo singular complexo, que bem pode ser o novo prosumer, o seu referente ideal.

De resto, a própria ideia de Estado representativo é o contraponto da ideia de indivíduo, não da ideia de comunidade. Trata-se, agora, simplesmente de repor a relação de uma forma mais directa e interactiva, reequacionando o papel das instâncias de intermediação (por exemplo, partidos e meios de comunicação), a caminho de uma progressiva desintermediação e do estabelecimento de relações mais abertas e flexíveis entre a lógica organizacional e a cidadania.

[1] Veja-se o ensaio de João Cardoso Rosas sobre o Estado Social. In Santos, J.A. (Org.), 2013. À esquerda da crise. Lisboa: Vega.

[2] Veja-se, a este propósito, a excepcional obra de Naomi Klein (2001). No Logo. Milão: Baldini & Castoldi.

Nova versão, actualizada. Título e Apresentação em espanhol. Texto em língua Portuguesa. Publicado no Blog sobre comunicación, contenidos y redes de Tendencias21. Dezembro de 2016

Nota de edição

Os primeiros artigos desta tese foram publicados a:

Os restantes 2 artigos que completam estas teses serão publicados dias 5 e 7 de Janeiro de 2017.

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