Na releitura do desenho clássico, Hollywood enxerga e dialoga com tendências antissistêmicas do público: o feminismo e os direitos dos animais, especialmente. Mas Tim Burton também deixa suas marcas inconfundíveis…
Toda obra humana traz, de um modo ou de outro, as marcas do seu tempo, mesmo que seja produzida por um monge num mosteiro ou por um eremita numa caverna. Que dizer então de um filme hollywoodiano, feito para ser visto por centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo? As marcas de sua época estarão impressas em cada fotograma, tanto quanto a sensibilidade de seus realizadores.
Tudo isso para falar do novo Dumbo, dirigido por Tim Burton. Há ali, a meu ver, um jogo de equilíbrio, uma corda bamba (já que estamos falando em circo) entre o temperamento do cineasta e as exigências da correção política atual. Não chega a ser um conflito, porque certamente Burton é simpático a tais exigências (liberdade para os animais, protagonismo das mulheres, respeito às diferenças).
Na passagem da animação original para a live action atual, mudou-se da fábula para a parábola. Os protagonistas já não são os animais, como no desenho, mas as crianças e os adultos que cercam o pequeno elefante. A “mensagem” básica do primeiro – a autoconfiança como elemento de superação de supostas deficiências – é mantida, mas se imbrica com outras questões igualmente prementes.
Nova mulher, nova ecologia
O papel da mulher, por exemplo. Praticamente ausentes do desenho de 1941 (se excetuarmos a elefanta-mãe), elas adquirem destaque agora na figura da esfuziante trapezista Colette (Eva Green) e sobretudo da esperta garota Milly (Nico Parker), com sua paixão pelos livros e pela ciência. Talvez não seja casual que o personagem que mais se aproxima da figura do herói clássico, Holt Farrier (Colin Farrell), seja um homem mutilado, um ex-astro caubói que voltou da guerra sem um braço.
Outra novidade em relação ao original é o modo radicalmente diferente com que são vistos os animais selvagens em cativeiro. Se no Dumbo original a crítica era ao tratamento cruel dispensado por alguns humanos malvados, mas sem questionar a condição cativa dos bichos, aqui é essa própria condição que é atacada e subvertida. Lugar de animal selvagem é na selva, ponto.
Ao lado dessas mudanças mais óbvias há outras tensões interessantes, como aquela entre arte e comércio, ou entre artesanato e indústria, traduzida no confronto entre o velho circo itinerante e a faraônica Dreamland, uma óbvia referência irônica à Disneylândia e a todos os megaparques de diversões modernos do mundo.
Freaks e ciência retrô
Nas frestas dessas afirmações de uma espécie de senso comum crítico contemporâneo, aparecem aqui e ali alguns temas e obsessões característicos de Tim Burton, bem como seu toque pessoal de estranhamento. Um momento em que as figuras bizarras do circo (a gorda sereia, o gigante musculoso, o magricela) usam suas qualidades para ajudar Dumbo é quase uma piscada de olho ao clássico Freaks (1932), de Tod Browning.
A paixão ambivalente do cineasta pela ciência e pela tecnologia surge brevemente em duas passagens: na revolta dos eletrodomésticos no showroom “futurista” do parque, quando há uma pane elétrica, e no aparato cinematográfico concebido e operado pela pequena Milly, que remete por exemplo à oficina do inventor de Edward Mãos de Tesoura. (Lembremos que a ação se passa por volta de 1920, quando o cinema já era uma tecnologia consolidada, que nada tinha a ver com a parafernália retrô de Milly.)
O pendor de Burton pelo estranho, sua centelha de malícia, seu saudável “espírito de porco” parecem um tanto amarrados pelas conveniências do grande espetáculo e do espírito edificante da parábola. Um exemplo é a transformação do personagem do dono do circo, Max Medici (Danny DeVito, impagável como sempre), um picareta simpático que vai se tornando cada vez mais simpático e cada vez menos picareta.
Mesmo a crítica à submissão do entretenimento (ou do prazer, em geral) ao puro comércio, personificada na figura do vilão Vandevere (Michael Keaton), tem seus limites. O verdadeiro dono do dinheiro, o investidor vivido por Alan Arkin, é poupado no final, confraternizando alegremente com Medici.
É lícito supor que, se tivesse total autonomia, Tim Burton investiria mais nos excêntricos e na anarquia, na ironia e na crítica da caretice. Mas isso não tira o encanto do novo Dumbo e de seu esforço bem-sucedido de transferir para a ação humana (com a ajuda de computadores, claro) o prodígio da animação.
Bio
O sétimo longa-metragem de Carlos Gerbase, Bio, chega aos cinemas quase dois anos depois de conquistar vários prêmios no festival de Gramado, incluindo o do júri popular. É um filme sui generis, que o próprio diretor define como “um documentário impossível, mais do que um falso documentário”.
É, em resumo, a história de um homem desde seu nascimento, em 1959, até sua morte, em 2070, contada, ou antes montada, por depoimentos de pessoas que interagiram com ele em algum momento. Em sua longa vida, ele estuda direito, depois passa para a biologia, tem uma breve experiência como ator, vive no interior gaúcho, em Porto Alegre, no Rio, em Nova York, namora várias mulheres, tem uma porção de filhos.
O protagonista, em si, não aparece em cena. Aliás, aparece fugazmente como bebê. Tudo o que sabemos sobre ele, a imagem que construímos, vem desses depoimentos heterogêneos e por vezes contraditórios.
Gerbase radicaliza assim um procedimento adotado em seu curta Deus ex-machina (1995). Quase toda a narrativa consiste nessas falas, filmadas como talking heads de um documentário convencional, crescentemente embaralhadas e pontuadas por esboços de cenas e de ambientes. O elenco inclui astros como Marco Ricca, Maria Fernanda Candido e Maitê Proença, ao lado de atores gaúchos menos conhecidos nacionalmente, mas excelentes, como Leo Ferlauto (como um padre autoritário), Fernanda Carvalho Leite (instrutora de tantra ioga) e Zé Victor Castiel (vizinho médico).
O viés irônico desse procedimento condiz com o tratamento gaiato dos temas, uma especulação pseudocientífica em torno da biologia e da astronomia (a certa altura surge até uma extraterrestre proveniente de uma das luas de Saturno). “Imagine uma mistura de Eduardo Coutinho com David Lynch”, brincou Gerbase numa entrevista. Ainda que sem atingir as alturas de um e de outro, é uma boa definição.
por José Geraldo Couto, Editor do Blog do Cinema | Texto original em português do Brasil
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