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Sábado, Dezembro 21, 2024

Um país desorganizado

J. Norberto Pires
J. Norberto Pires
Professor da Universidade de Coimbra, área de Robótica e Engenheiro

Vi muitas coisas e li muitos textos a propósito da tragédia de Pedrogão. Todos eles deixam no ar a ideia de um país desorganizado, sem nenhum tipo de coordenação efectiva, habituado a esbanjar dinheiro sem planear e sem estudar devidamente os problemas.

De todos, considero particularmente relevante e significativo o testemunho da jornalista Andreia Novo da RTP, que esteve no cenário da tragédia de Pedrogão, juntamente com o operador de imagem Rui Castro. Partilho-o porque ele mostra muito bem o drama vivido nesta noite de terror, mas também porque aponta pistas e evidencia a desorganização deste país.

É preciso respeitar as pessoas, não é altura de avaliar, muito menos de apontar responsabilidades, mas é a altura de olhar para o que aconteceu e, em silêncio, reflectir, pois nada pode continuar na mesma. Devemos-lhes um enorme pedido de desculpas, mas também a promessa muito firme de que o país pós-Pedrogão será radicalmente diferente.

Sinto necessidade de vos contar o que eu e o Rui Castro vimos, sentimos. Saímos às 2h de Gaia, chegamos às 4h a Pedrogão. Os acessos estavam todos cortados. Percorremos centenas de kms e não havia sinal de bombeiros. As pessoas estavam todas na rua. Todas. Só depois das 5h é que conseguimos andar por estradas queainda não estavam interditas, mas com fogo por todos os lados. Conseguimos passar. Às 6h começamos a encontrar os primeiros carros incendiados. Uns atrás dos outros. Desfeitos. 6h30, já com luz do dia, descobrimos umas aldeias no meio do fumo que cega de tão denso. Começam a surgir os corpos. Não consigo descrever bem, a partir daqui, o que aconteceu. Uns atrás dos outros. Famílias inteiras no chão, carbonizadas, e não dentro dos carros como alguns jornalistas têm avançado. Casas completamente destruídas pelas chamas. “São imensos menina, mas não podemos apanhá-los, não temos autorização” disse-me um bombeiro quando lhe perguntei pelos corpos. Falei com moradores de duas aldeias com cerca de 80/100 habitantes que já não diziam coisa, com coisa. Só falavam nas pessoas desaparecidas. “Isto é o inferno na terra, meu amor” disse-me uma idosa em lágrimas. Certo é que os bombeiros nunca lá foram até agora. Muitos dos que morreram são locais, fugiam de carro quando se despistaram, explodiram, ou simplesmente sufocaram. Nunca vi nada assim. …”

Pedido de desculpas

O país deve um pedido de desculpas a Pedrogão Grande e às famílias das 64 vítimas mortais do brutal incêndio que assolou a região, pela enorme desorganização e incapacidade que revelam os serviços do Estado. Todos temos culpa pelos péssimos Governos que elegemos, pela enorme confusão a que chegaram os partidos políticos, pela corrupção que permitimos na gestão do interesse público, pela forma passiva como toleramos essa corrupção e abuso, pela nossa incapacidade de escrutinar os eleitos e de ser muito exigentes na sua avaliação, pela tolerância que temos perante nomeações feitas pelo Estado de pessoas sem a menor capacidade técnica, moral e cívica, e por termos desperdiçado os fundos comunitários que recebemos para, justamente, organizar o país.

Na verdade, permitimos que, programa-após-programa, ministro-após-ministro, e apesar das bons discursos e boas intenções, os fundos recebidos para desenvolvimento regional fossem, em grande parte, aplicados em projectos de interesse duvidoso e cujo impacto no desenvolvimento regional não foi tido em conta, nem avaliado. Nasceram, por esse país fora, infraestruturas desnecessárias, estradas e rotundas, museus para todos os gostos, piscinas, pavilhões, parques industriais e de localização industrial, centros de negócios, etc., e deu-se azo a todo o tipo de festa, pretensamente dedicada à promoção de produtos endógenos, dias e semanas disto e daquilo, tudo sem o menor critério, sem a menor avaliação, só porque dava nas vistas e era politicamente correto. 

No essencial acções descoordenadas, que nunca consideraram a necessidade de ver os investimentos como algo que tem objectivos a atingir em termos de desenvolvimento local e regional, mas também impactos na economia e na organização social. Para além disso, os aspectos de gestão e manutenção das infraestruturas e equipamentos financiados nunca foram devidamente considerados, pelo que se verificou a multiplicação de equipamentos desnecessários (duplicados e triplicados em áreas geográficas muito próximas), sem a necessária partilha e cooperação entre municípios, e, consequentemente, impossíveis de serem minimamente sustentáveis (muitos fecharam, outros são um peso enorme nos parcos orçamentos dos municípios nacionais).

País desigual, desequilibrado e desertificado

O resultado é que 130 mil milhões de euros depois temos um país mais desigual, mais desequilibrado, mais desertificado, com índices de competitividade regional a diminuir, totalmente desorganizado e em muitos locais totalmente abandonado. Temos de pedir desculpa porque ministro-atrás-de-ministro, programa-atrás-de-programa, o único critério de boa execução de fundos é a taxa de execução, isto é, a percentagem de dinheiro gasto, e NUNCA, mas mesmo NUNCA, a qualidade do investimento, a sua sustentabilidade e os seus resultados. Atiramos dinheiro para os problemas, mas nunca pensamos verdadeiramente neles e verificamos, alguns com surpresa, que em muitas áreas temos um país pior.

Os fundos comunitários eram um saco de dinheiro para o qual era necessário arranjar projectos, ao invés de ser uma oportunidade de realizar planos de desenvolvimento regional pensados, discutidos e avaliados. Planos que obrigavam a monitorizar com atenção os resultados obtidos, os impactos observados e, consequentemente, ajustar o programa de financiamento. Quando estive em funções na Presidência da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (em 2012) iniciei um programa de avaliação por sub-região.

Quando saí, 5 meses depois de ter assumido funções, tinha realizado duas avaliações. Não se fez mais nenhuma. Também deixei claro, em várias intervenções que era necessária uma nova atitude perante a gestão de fundos. Uma delas, feita no TEDs-Coimbra, foi muito mal vista pela tutela. Veja-a aqui:

O contrato do SIRESP

Temos também de pedir desculpa pelos vários sistemas que financiamos, para sua protecção, mas que falham quando precisamos deles. É o caso do SIRESP (Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal). O contrato do SIRESP, que custou centenas de milhões de euros (mais de 400 milhões de euros), é uma maravilha da contratação pública. Foi criado para funcionar em emergências, mas a gestora do serviço avisa que o sistema pode falhar em situações de emergência. Consequentemente, trata de excluir essas falhas de qualquer tipo de responsabilidade.

Vejam o ponto 17, nomeadamente o 17.2, desse contrato. Em PORTUGAL contrata-se algo para FUNCIONAR NUMA EMERGÊNCIA, que funciona bem em todas as situações, MENOS NUMA EMERGÊNCIA.

Veja o contrato aqui: SIRESP

A política, isto é, a actividade que deveria ter como objectivo mudar o país e o mundo, serve na verdade para alimentar interesses e lutar por poder pessoal ou de pequenos grupos. É preciso que este nosso “amigo” ganhe uma eleição? Aprova-se uma estrada, que não é necessária nem prioritária, um novo museu, sem nenhum tipo de propósito, uma piscina, um pavilhão, um novo centro escolar, etc., para ele possa apresentar obra e criar a ilusão de um grande gestor da causa pública.

Reorganização administrativa por fazer

É preciso mostrar a nossa determinação em apoiar as regiões e o seu desenvolvimento? Cria-se a semana de tudo e mais alguma coisa, espalha-se dinheiro por todo o tipo de festas e festarolas, mantém-se artificialmente uma ideia de actividade e de dinâmica, etc., de forma a dar a ilusão de que organizamos as actividades económicas regionais, tornamos o interior interessante para o investimento produtivo e somos capazes de evidenciar as mais valias diferenciadoras. É necessário que tudo isto assim prossiga, sem reflexão e sem capacidade de questionar?

É fácil, substitui-se tudo e todos por boys, isto é, pessoas que dizem “sim” ou “não” como lhe mandam e que, na verdade, servem muito bem o propósito de criar a ilusão. O que não dá votos, não cria ilusão e, consequentemente, não tem efeito prático imediato é, pura e simplesmente, ignorado.

Consequentemente, aquilo que era necessário fazer, o estudo que era necessário realizar, o planeamento, a médio e longo prazo, que era necessário ter preparado, tudo isso ficou por fazer. Não fomos capazes de uma simples reorganização administrativa (temos um país minúsculo reticulado em 308 municípios, muitos deles com menos de 10 mil habitantes) e de dar voz ao planeamento, à competência, à avaliação e à necessária responsabilização. E todos somos responsáveis por isso, porque validamos, mais ou menos calados, as várias acções que conduziram a este estado de coisas.

E agora?

Pelo que agora, perante a tragédia de ver 64 pessoas mortas porque somos um país desorganizado e incapaz de proteger seu território e população, querem pedir responsabilidades a quem? Ficam contentes se um ministro se demitir? O que é que isso resolve, se, na verdade, o verdadeiro monstro está espalhado pelas várias instituições e tem mecanismos de auto-protecção?

De que vale querer saber o que aconteceu em Pedrogão, de forma competente e técnica, apontando as várias falhas e problemas, mas também as soluções e necessárias substituições de pessoas por incompetência, se de imediato aparece logo um “especialista”, daqueles que está há várias dezenas de anos na gestão da desorganização nacional, a dizer qual foi a causa de tudo isto? E como sabe? Não sabe, suspeita, baseado na sua grande “competência” e “experiência”.

De que vale alimentar a “intenção” de tudo avaliar, de forma independente e técnica, sem a prévia determinação formal e solene de que isto vai mudar definitivamente? Não podemos permanecer na ilusão e ficar tranquilos com aparentes actos de mudança. O que é importante que esses senhores saibam – senhores que andam há dezenas de anos neste assunto, deixando tudo na mesma – é que a calamidade de Pedrogão é demasiado grande, que morreram demasiadas pessoas para isto ficar por conversa fiada.

Tudo tem de ser colocado em causa, avaliado e será necessário retirar todas as responsabilidades e consequências. É preciso acabar com a tragédia, enterrar os mortos e tranquilizar as populações. Mas depois tem de ser o tempo de avaliar e responsabilizar, fazendo-o com a devida distância e percebendo que muitas destas coisas resultam de comportamentos errados, políticas erradas, irresponsabilidade, má gestão da floresta, má organização, péssimos investimentos (incluindo de fundos comunitários) e ausência de consciencialização pública e educação para a realidade que são os incêndios. Na verdade, os incêndios florestais fazem parte da nossa realidade e vão sempre existir, não podem é descambar em tragédias onde fica evidente uma grande e confrangedora desorganização e descoordenação.

O que aconteceu não pode voltar a acontecer

O que é preciso é que todos metam na cabeça que isto não vai voltar a acontecer. Devemos isso aos que morreram, mas especialmente aos que ficaram, todos nós, nomeadamente os familiares e amigos mais próximos das vítimas, que vão ter de viver com este drama toda a sua vida.

Temos todos de exigir que, em devido tempo, passada a tormenta, tudo será posto em causa, serão avaliadas as responsabilidades, todas, e que o país se organizará para impedir que uma tragédia destas possa voltar a acontecer. Não é dizer palavras simples e de circunstância, mas prometer, solenemente, que será feita uma avaliação rigorosa e independente e que nada ficará na mesma.

A única coisa que peço ao Presidente da República, e ao Primeiro-Ministro, é que garantam isso solenemente. Portugal tem vários e sérios problemas, mas o maior de todos é a sua desorganização.

A tragédia de Pedrogão, assim como muitos outros eventos marcantes, mostra bem que em Portugal há muita gente que sabe o que está mal, mas são raras as pessoas que sabem o que deve ser feito e quase inexistentes aquelas que, sabendo o que deve ser feito, têm coragem de deitar mãos à obra. Essas são pessoas tidas por loucas e têm o péssimo hábito de viver como pensam, sem pensar como viverão. Num mundo de gente a tratar da vidinha, estes loucos não sobrevivem muito tempo e nós, todos nós, somos responsáveis por isso.

Pensem nisso.

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