A União Europeia, timidamente, revelou finalmente que a China seria um ‘rival sistémico’ em alguns domínios, concluiu acordos sobre ‘conectividade’ com a Índia e o Japão, começou a reagir perante a óbvia intromissão chinesa na Europa e ameaçou abandonar a posição farisaica de espectador entre os EUA e a China.
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O despertar do ocidente
A presidência de Xi Peng tem a sua imagem de marca nas chamadas ‘Rotas da Seda’ (que foram designadas já por várias siglas) através das quais foram realizados vultuosos investimentos em infraestruturas e corredores industriais um pouco por todo o mundo em desenvolvimento, incluindo aqui alguns países europeus como a Grécia, Portugal ou a Hungria.
O Ocidente aplaudiu e estimulou a viragem da China para o capitalismo e para a sua inclusão nos mecanismos da ordem internacional a partir dos finais dos anos 1970, partindo do princípio de que este capitalismo iria pôr fim ao comunismo e à sua agenda imperial, crença que manteve praticamente até aos nossos dias.
A China seria assim um novo tigre asiático, consideravelmente maior do que os seus percursores e vizinhos, e, portanto, mais importante ainda para os negócios, mas sem veleidades imperiais. A ocupação militar do mar do Sul da China, o modelo civil-militar em que os portos civis se tornam bases navais, as frotas de pesca (depois de devastarem os mares) se revelam como embarcações paramilitares, a agressão militar aos vizinhos, a diplomacia do ‘lobo guerreiro’, a conquista sucessiva de instituições do universo onusiano (da alimentação à saúde passando pelos direitos humanos) através de uma paciente diplomacia onde o suborno e a solidariedade autocrática são os dois principais pilares, tudo isso veio finalmente acordar as adormecidas elites políticas ocidentais.
A União Europeia, timidamente, revelou finalmente que a China seria um ‘rival sistémico’ em alguns domínios, concluiu acordos sobre ‘conectividade’ com a Índia e o Japão, começou a reagir perante a óbvia intromissão chinesa na Europa e ameaçou abandonar a posição farisaica de espectador entre os EUA e a China.
Os EUA também se começaram a mexer. Depois de a Administração Trump ter anunciado nos finais de 2019 o ‘Blue Dot Network’ que iria avaliar projectos de infraestruturas na zona do Indo-Pacífico – iniciativa que aparentemente foi abortada pela pandemia – a Administração Biden avançou com o B3W (Build Back Better World) que fez aprovar na recente cimeira do G-7.
O B3W é o nome de uma iniciativa das Nações Unidas de 2015 que tem por objectivo apoiar a reconstrução de países ou regiões afectadas por catástrofes naturais de forma a prevenir os efeitos mais devastadores no futuro, e que a campanha eleitoral de Biden resolveu usar fazendo o paralelo entre a pandemia e a recuperação económica necessária e que agora – na sua terceira incarnação – a administração Biden pretende ver como aplicada aos grandes investimentos infraestruturais necessários no mundo até 2035.
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Da importância da palavra
A escolha do termo para o que deveria ser a principal resposta ocidental ao desafio comunista chinês é matéria que tem extrema importância e que deveria ter merecido da administração americana alguma reflexão que evitasse apenas a reciclagem de um slogan eleitoral (ele mesmo já usado antes e, do meu ponto de vista, abusivamente).
A título de exemplo, a principal vitória diplomática chinesa foi a de conseguir impor o nome de ‘rotas da seda’ para o vasto e diversificado roteiro das comunicações euro-afro-asiáticas que, em milhares de anos, nunca foram dominadas pelo comércio da seda. Seda é um vocábulo de origem latina que originalmente se referia à China, e a China era importante por ser a mais longínqua das paragens (excepção feita ao Japão) com que o Mediterrâneo se relacionava num extenso roteiro de comércios e contactos.
Posto isto, tanto quanto a informação tem sido decifrada historicamente, a seda nunca dominou essas rotas nos últimos milhares de anos, mas sim as especiarias, de que na Grécia clássica existia já um catálogo com mais de uma centena. Até há uns dois mil anos atrás a ‘pimenta longa’, vinda do Norte do subcontinente indiano, era a especiaria dominante, e depois disso, foi a pimenta preta do malabar (sudoeste da Índia), a especiaria que dominou os mercados, ao ponto de ser conhecida como ouro preto e ter sido utilizada como moeda na baixa Idade Média.
Não é por acaso que não há qualquer referência à seda e apenas referências às especiarias como motor da expansão marítima portuguesa; é apenas porque eram as especiarias e não a seda que estavam no centro das rotas comerciais. De resto, a expansão marítima chinesa contemporânea da portuguesa tinha também as especiarias no seu radar, a seda não desempenhando aí qualquer papel.
As rotas da seda são na verdade um puro produto de marketing nascido em parte da ignorância de uns e da visão estratégica de outros. Para lhe fazer face, é necessário saber do que se fala, mas ter também a noção estratégica do que está em jogo não se limitando a plagiar slogans eleitorais, eles mesmos já plágios de gosto duvidoso.
O uso informado e adequado da palavra, é a condição primeira de qualquer aposta na contestação do projecto totalitário comunista que faz do uso eufemístico e abusivo da palavra a sua pedra de toque e que tem no prontuário politicamente correcto da presente administração americana uma cópia preocupante.
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Humanismo e interesse geral
Se a palavra é importante, mais importante ainda são os conteúdos. Aqui, a administração Biden, que propaladamente cortou com a sua predecessora unilateralista, deveria ter começado por entender a necessidade de envolver todos os parceiros que supostamente estarão no lançamento da ideia no seu desenho, ambições e objectivos. Por outras palavras, mais do que ganhar o assentimento dos seus parceiros do G-7 (que é aqui na prática alargado à União Europeia e que, acertadamente, foi neste domínio alargado também à Austrália, Coreia do Sul e Índia) seria imperioso que todos os parceiros fossem chamados a participar.
A participação, que começou mal, seguindo o exemplo folclórico e decorativo da iniciativa chinesa, deve ser corrigida quanto antes levando ao empenho dos fundadores e, assim que definido o modelo, deve prever a abertura à participação de todos os interessados que reúnam as condições objectivamente requeridas.
Nos conteúdos, um pouco na senda do que as iniciativas de ‘conectividade’ já postas em marcha pelas instâncias comunitárias, fala-se muito de valores, o que é bom e indispensável, mas não pode ficar pelo nível da retórica, sendo necessário ver como se materializam esses valores nos procedimentos e nos conteúdos.
Nos procedimentos há três princípios maiores que têm de ser assegurados à partida. A transparência é o primeiro, e aqui creio que bastaria decalcar a legislação americana da transparência dos actos públicos que, com todas as insuficiências, é a melhor que existe no mundo. A separação de poderes é o segundo princípio e deve prever instituições realmente autónomas, mesmo que respondendo perante os Estados, que assegurem decisão, gestão e supervisão. O combate ao conflito de interesses é o terceiro princípio, e aqui é crucial assegurar que os interesses particulares não capturem o interesse geral. Para que a verdadeira iniciativa privada que alegadamente constituirá o essencial do sistema possa na verdade buscar o seu legítimo interesse promovendo o interesse geral é decisivo que os mecanismos públicos não sejam capturados por interesses privados ou que se permita que estes cartelizem a sua acção.
Nos conteúdos há que ser capaz de colocar a humanidade no centro das atenções e a avaliação das acções a prosseguir feita por esses critérios de humanidade. Nessa matéria, há falta de melhor, o ponto de partida podem ser os objectivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas.