E Abradatas partiu na campanha de Ciro contra os Egípcios (7.1.29-32). Ao comando da sua quadriga bélica, o rei de Susos, incitando os companheiros a segui-lo, avança contra e para o meio dos Egípcios, com um tal ardor que se não preocupava com o que exigia dos cavalos, picando-os até os fazer sangrar, e que consegue pôr em fuga alguns carros inimigos. A pugna encarniça; copiosas são as perdas e imensa a carnificina. A descrição é vívida, repleta de movimento e pormenores do desenrolar da batalha.
Heróis tombam. Abradatas é um desses.
ὁ δὲ Ἀβραδάτας ἀντικρὺ διᾴττων εἰς τὴν τῶν Αἰγυπτίων φάλαγγα ἐμβάλλει· συνεισέβαλον δὲ αὐτῷ καὶ οἱ ἐγγύτατα τεταγμένοι. πολλαχοῦ μὲν οὖν καὶ ἄλλοθι δῆλον ὡς οὐκ ἔστιν ἰσχυροτέρα φάλαγξ ἢ ὅταν ἐκ φίλων συμμάχων ἡθροισμένη ᾖ, καὶ ἐν τούτῳ δὲ ἐδήλωσεν. οἱ μὲν γὰρ ἑταῖροί τε αὐτοῦ καὶ ὁμοτράπεζοι συνεισέβαλλον·
οἱ δ᾽ ἄλλοι ἡνίοχοι ὡς εἶδον ὑπομένοντας πολλῷ στίφει τοὺς Αἰγυπτίους, ἐξέκλιναν κατὰ τὰ φεύγοντα ἅρματα καὶ τούτοις ἐφείποντο.
οἱ δὲ ἀμφὶ Ἀβραδάταν ᾗ μὲν ἐνέβαλλον, ἅτε οὐ δυναμένων διαχάσασθαι τῶν Αἰγυπτίων διὰ τὸ μένειν τοὺς ἔνθεν καὶ ἔνθεν αὐτῶν, τοὺς μὲν ὀρθοὺς τῇ ῥύμῃ τῇ τῶν ἵππων παίοντες ἀνέτρεπον, τοὺς δὲ πίπτοντας κατηλόων καὶ αὐτοὺς καὶ ὅπλα καὶ ἵπποις καὶ τροχοῖς. ὅτου δ᾽ ἐπιλάβοιτο τὰ δρέπανα, πάντα βίᾳ διεκόπτετο καὶ ὅπλα καὶ σώματα.
ἐν δὲ τῷ ἀδιηγήτῳ τούτῳ ταράχῳ ὑπὸ τῶν παντοδαπῶν σωρευμάτων ἐξαλλομένων τῶν τροχῶν
ἐκπίπτει ὁ Ἀβραδάτας καὶ ἄλλοι δὲ τῶν συνεισβαλόντων, καὶ οὗτοι μὲν ἐνταῦθα ἄνδρες ἀγαθοὶ γενόμενοι κατεκόπησαν καὶ ἀπέθανον·
οἱ δὲ Πέρσαι συνεπισπόμενοι, ᾗ μὲν ὁ Ἀβραδάτας ἐνέβαλε καὶ οἱ σὺν αὐτῷ, ταύτῃ ἐπεισπεσόντες τεταραγμένους ἐφόνευον, ᾗ δὲ ἀπαθεῖς ἐγένοντο οἱ Αἰγύπτιοι (πολλοὶ δ᾽ οὗτοι ἦσαν), ἐχώρουν ἐναντίοι τοῖς Πέρσαις.
Abradatas, arremetendo a eito, carrega para o interior da falange egípcia. E com ele penetravam os das fileiras vizinhas. Ora, em muitas outras ocasiões se tem demonstrado que não existe falange mais forte do que aquela que é composta de um conjunto de amigos, o mesmo nesta ficou demonstrado. Com efeito, os seus camaradas de armas e de mesa o acompanhavam nessa operação.
Quanto aos demais condutores de carros, ao verem que os Egípcios lhes resistiam em formação densa, viravam em direcção aos que fugiam e perseguiam-nos.
Mas Abradatas e os seus camaradas, no ponto em que carregavam (já que os Egípcios não conseguiam abrir brecha em virtude da resistência firme dos homens que os rodeavam de um lado e do outro), chocavam com a força da sua carga de cavalaria contra os que se estavam de pé e derrubavam-nos. Os que caíam, esmagavam-nos, a eles e às suas armas, debaixo de cavalos e rodas. Tudo o que fosse apanhado pelos esporões, era com toda a violência retalhado, tanto armaduras como corpos.
Nesta indescritível confusão, com as rodas dos carros ressaltando por cima de pilhas de toda a sorte de coisas, cai Abradatas e outros dos que com ele haviam executado a manobra de penetração. Estes homens, que aqui provaram o seu valor, foram dilacerados e morreram. Os Persas, prosseguindo o ataque no ponto em que Abradatas e o seus camaradas haviam carregado, lançaram-se sobre os inimigos em confusão e massacraram-nos. Mas no ponto em que os Egípcios não haviam sofrido qualquer baixa (e eram em grande número), avançaram contra os Persas.
A batalha prosseguiu, cruenta, até à vitória persa. O rei pede notícias de Abradatas (7.3.2-3), surpreendido por aquele não ter aparecido, como era seu hábito. Perdeu a vida: é a má nova que lhe traz um auxiliar de campo. E morreu como herói, ele e os seus camaradas; outros, contrariamente, ao verem a massa dos Egípcios, fugiram. Há também novas da esposa. Segundo lhe contam (7.3.4-5):
καὶ νῦν γε, ἔφη, λέγεται αὐτοῦ ἡ γυνὴ ἀνελομένη τὸν νεκρὸν καὶ ἐνθεμένη εἰς τὴν ἁρμάμαξαν, ἐν ᾗπερ αὐτὴ ὠχεῖτο, προσκεκομικέναι αὐτὸν ἐνθάδε ποι πρὸς τὸν Πακτωλὸν ποταμόν. καὶ τοὺς μὲν εὐνούχους καὶ τοὺς θεράποντας αὐτοῦ ὀρύττειν φασὶν ἐπὶ λόφου τινὸς θήκην τῷ τελευτήσαντι· τὴν δὲ γυναῖκα λέγουσιν ὡς κάθηται χαμαὶ κεκοσμηκυῖα οἷς εἶχε τὸν ἄνδρα, τὴν κεφαλὴν αὐτοῦ ἔχουσα ἐπὶ τοῖς γόνασι.— Agora mesmo — diz ele — conta-se que a sua mulher levou o cadáver e o dispôs no próprio carro em que ela se fazia transportar, e carregou-o até aqui algures, junto ao rio Pactolo. E os seus eunucos e servos, segundo dizem, estão a escavar no topo de uma certa colina um túmulo para o morto. Quanto à mulher, dizem que está sentada por terra, depois de paramentar o corpo do marido com o que tinha, com a cabeça dele sobre os joelhos.
Ciro, então, ordena honrar o morto, com o sacrifício de animais, cavalos, bois e gado miúdo (7.3.6-7). E vai ver a viúva, com o intuito de dar-lhe algum consolo, partilhando mesmo da dor daquela (7.3.8-13). E há pormenores macabros, que lembram um filme de terror, uma daquelas cenas que o cinema banalizou.
ἐπεὶ δὲ εἶδε τὴν γυναῖκα χαμαὶ καθημένην καὶ τὸν νεκρὸν κείμενον, ἐδάκρυσέ τε ἐπὶ τῷ πάθει καὶ εἶπε· φεῦ, ὦ ἀγαθὴ καὶ πιστὴ ψυχή, οἴχῃ δὴ ἀπολιπὼν ἡμᾶς; καὶ ἅμα ἐδεξιοῦτο αὐτὸν καὶ ἡ χεὶρ τοῦ νεκροῦ ἐπηκολούθησεν· ἀπεκέκοπτο γὰρ κοπίδι ὑπὸ τῶν Αἰγυπτίων. ὁ δὲ ἰδὼν πολὺ ἔτι μᾶλλον ἤλγησε· καὶ ἡ γυνὴ δὲ ἀνωδύρατο καὶ δεξαμένη δὴ παρὰ τοῦ Κύρου ἐφίλησέ τε τὴν χεῖρα καὶ πάλιν ὡς οἷόν τ᾽ ἦν προσήρμοσε, καὶ εἶπε·
καὶ τἆλλά τοι, ὦ Κῦρε, οὕτως ἔχει· ἀλλὰ τί δεῖ σε ὁρᾶν; καὶ ταῦτα, ἔφη, οἶδ᾽ ὅτι δι᾽ ἐμὲ οὐχ ἥκιστα ἔπαθεν, ἴσως δὲ καὶ διὰ σέ, ὦ Κῦρε, οὐδὲν ἧττον.
ἐγώ τε γὰρ ἡ μώρα πολλὰ διεκελευόμην αὐτῷ οὕτω ποιεῖν, ὅπως σοι φίλος ἄξιος γενήσοιτο· αὐτός τε οἶδ᾽ ὅτι οὗτος οὐ τοῦτο ἐνενόει ὅ τι πείσοιτο, ἀλλὰ τί ἄν σοι ποιήσας χαρίσαιτο. καὶ γὰρ οὖν, ἔφη, αὐτὸς μὲν ἀμέμπτως τετελεύτηκεν, ἐγὼ δ᾽ ἡ παρακελευομένη ζῶσα παρακάθημαι.
καὶ ὁ Κῦρος χρόνον μέν τινα σιωπῇ κατεδάκρυσεν, ἔπειτα δὲ ἐφθέγξατο·
ἀλλ᾽ οὗτος μὲν δή, ὦ γύναι, ἔχει τὸ κάλλιστον τέλος· νικῶν γὰρ τετελεύτηκε.
Σὺ δὲ λαβοῦσα τοῖσδε ἐπικόσμει αὐτὸν τοῖς παρ᾽ ἐμοῦ — παρῆν δὲ ὁ Γωβρύας καὶ ὁ Γαδάτας πολὺν καὶ καλὸν κόσμον φέροντες —ἔπειτα δ᾽, ἔφη, ἴσθι ὅτι οὐδὲ τὰ ἄλλα ἄτιμος ἔσται, ἀλλὰ καὶ τὸ μνῆμα πολλοὶ χώσουσιν ἀξίως ἡμῶν καὶ ἐπισφαγήσεται αὐτῷ ὅσα εἰκὸς ἀνδρὶ ἀγαθῷ.
καὶ σὺ δ᾽, ἔφη, οὐκ ἔρημος ἔσῃ, ἀλλ᾽ ἐγώ σε καὶ σωφροσύνης ἕνεκα καὶ πάσης ἀρετῆς καὶ τἆλλα τιμήσω καὶ συστήσω ὅστις ἀποκομιεῖ σε ὅποι ἂν αὐτὴ ἐθέλῃς· μόνον, ἔφη, δήλωσον πρὸς ἐμὲ πρὸς ὅντινα χρῄζεις κομισθῆναι.
καὶ ἡ Πάνθεια εἶπεν·
ἀλλὰ θάρρει, ἔφη, ὦ Κῦρε, οὐ μή σε κρύψω πρὸς ὅντινα βούλομαι ἀφικέσθαι.
Quando viu a mulher, sentada por terra e com o cadáver jacente, chorou com a emoção e disse:
— Ai, alma boa e fiel, então partiste e deixaste-nos?
E ao mesmo tempo que Ciro lhe estendeu a mão direita, a mão do morto vem atrás, pois fora decepada à lâmina pelos Egípcios. Ao ver isto, ainda mais se condoeu. A mulher irrompeu em lágrimas e, tomando a mão de Ciro, beijou-a, encaixou-a de novo no sítio o melhor que pôde e disse:
— Quanto ao resto, Ciro, bem, está no mesmo estado. Mas o que precisas tu de ver? E isto — disse — sofreu ele não pouco por minha causa, mas talvez não menos por tua causa também, Ciro. Eu (a louca!) muito o incitei a tal feito, para que fosse um digno amigo teu. Tu mesmo sabes que ele não pensava naquilo que lhe poderia sobrevir, mas em agir para te agradar. De facto — disse — ele teve uma morte sem mácula, enquanto eu, que o encorajou, aqui estou sentada e em vida.
Ciro, por um certo tempo, chorou em silêncio; depois, ergueu a voz:
— Mas olha, senhora, este homem teve o mais belo dos fins, pois pereceu vencedor.
Quanto a ti, aceita estes presentes da minha parte e com eles adorna o corpo dele — estavam lá Góbrias e Gadatas, sendo portadores de abundantes e belos ornamentos —; além disso — acrescentou — fica sabendo que no demais ele não ficará privado de honras; pelo contrário, muitas mãos lhe erguerão um monumento digno de nós e que lhe serão oferecidos tantos sacrifícios quantos os que devidos a um homem valoroso.
E no que a ti respeita — disse ainda —, não ficarás só, mas graças aos à tua moderação, a toda a tua virtude e a às tuas demais qualidades, hei-de honrar-te e encomendar-te a alguém que te escolte até onde tu desejares. Tão-somente diz-me a quem queres ser conduzida.
Panteia respondeu:
— Vá, Ciro, não tenhas medo, não hei-de esconder de ti junto de que desejo ir.
As palavras finais de Panteia denotam aquilo que se chama ambiguitas tragica. É um conceito-chave nas filosofias de Nietzsche Heidegger[1]. manifesta, por exemplo, no Édipo Rei de Sófocles. Palavras que ao ouvido de Ciro anunciam, no máximo, indecisão acompanhada de deferente aceitação da ajuda por ele oferecida. Cego, ou ludibriado pela sua própria emoção, nem a mínima suspeita lhe aflorava o espírito de que Panteia, ela, muito longe de se achar sob o efeito de um torpor e de um estado de desorientação provocado pelo luto ainda muito quente, poderia ter já tomado uma deliberação, nem de que as suas palavras eram a expressão desta deliberação.
Quiçá um terceiro observador pudesse ter percebido.
ὁ μὲν δὴ ταῦτ᾽ εἰπὼν ἀπῄει, κατοικτίρων τήν τε γυναῖκα οἵου ἀνδρὸς στέροιτο καὶ τὸν ἄνδρα οἵαν γυναῖκα καταλιπὼν οὐκέτ᾽ ὄψοιτο.
ἡ δὲ γυνὴ τοὺς μὲν εὐνούχους ἐκέλευσεν ἀποστῆναι, ἕως ἄν, ἔφη, τόνδ᾽ ἐγὼ ὀδύρωμαι ὡς βούλομαι.
τῇ δὲ τροφῷ εἶπε παραμένειν, καὶ ἐπέταξεν αὐτῇ, ἐπειδὰν ἀποθάνῃ, περικαλύψαι αὐτήν τε καὶ τὸν ἄνδρα ἑνὶ ἱματίῳ. ἡ δὲ τροφὸς πολλὰ ἱκετεύουσα μὴ ποιεῖν τοῦτο, ἐπεὶ οὐδὲν ἥνυτε καὶ χαλεπαίνουσαν ἑώρα, ἐκάθητο κλαίουσα.
Ditas estas palavras, Ciro retirou-se, com compaixão da mulher por ter sido privada de um tal marido e do marido por ter deixado tal mulher para não voltar a vê-la.
A mulher ordenou aos eunucos que partissem.
— Até — disse — eu acabar de chorar o meu marido como o desejo fazer.
À ama instruiu que ficasse e encarregou-a de, após a sua morte, de a envolver, ela e o marido, num só manto. A ama, a despeito de muito lhe ter suplicado que não o fizesse, como não obteve resultado e antes a via ficar zangada, sentou-se a chorar.
As palavras de Panteia não poderiam ser mais claras. A relação entre senhora e ama proporcionam proximidade, mais, a intimidade e o amor como o de uma filha e mãe. E com estes a intuição e a partilha das emoções e das vicissitudes, dos desvarios e do destino. A ama intuiu bem. E sofreu.
O desfecho chegou.
ἡ δὲ ἀκινάκην πάλαι παρεσκευασμένον σπασαμένη σφάττει ἑαυτὴν καὶ ἐπιθεῖσα ἐπὶ τὰ στέρνα τοῦ ἀνδρὸς τὴν ἑαυτῆς κεφαλὴν ἀπέθνῃσκεν. ἡ δὲ τροφὸς ἀνωλοφύρατό τε καὶ περιεκάλυπτεν ἄμφω ὥσπερ ἡ Πάνθεια ἐπέστειλεν.
ὁ δὲ Κῦρος ὡς ᾔσθετο τὸ ἔργον τῆς γυναικός, ἐκπλαγεὶς ἵεται, εἴ τι δύναιτο βοηθῆσαι. οἱ δὲ εὐνοῦχοι ἰδόντες τὸ γεγενημένον, τρεῖς ὄντες σπασάμενοι κἀκεῖνοι τοὺς ἀκινάκας ἀποσφάττονται οὗπερ ἔταξεν αὐτοὺς ἑστηκότες. καὶ νῦν τὸ μνῆμα μέχρι τοῦ νῦν τῶν εὐνούχων κεχῶσθαι λέγεται· καὶ ἐπὶ μὲν τῇ ἄνω στήλῃ τοῦ ἀνδρὸς καὶ τῆς γυναικὸς ἐπιγεγράφθαι φασὶ τὰ ὀνόματα, Σύρια γράμματα, κάτω δὲ εἶναι τρεῖς λέγουσι στήλας καὶ ἐπιγεγράφθαι “ΣΚΗΠΤΟΎΧΩN”.
ὁ δὲ Κῦρος ὡς ἐπλησίασε τῷ πάθει ἀγασθείς τε τὴν γυναῖκα καὶ κατολοφυράμενος ἀπῄει. καὶ τούτων μὲν ᾗ εἰκὸς ἐπεμελήθη ὡς τύχοιεν πάντων τῶν καλῶν, καὶ τὸ μνῆμα ὑπερμέγεθες ἐχώσθη, ὥς φασιν.
Ela, puxando de uma adaga há muito preparada, desfere um golpe em si própria; e, pousando a cabeça sobre o peito do marido, morre. A ama pranteou em voz alta e cobriu ambos os corpos tal como Panteia a instruíra.
Ciro, ao saber do acto da mulher, ficou perturbado e foi ver se poderia ajudar em alguma coisa. Os eunucos, em número de três, vendo o que acontecera, tomaram as suas adagas e suicidam-se no preciso local em que a senhora lhes dissera que ficassem. E hoje ainda se diz que o monumento aos eunucos permanece de pé até aos nossos dias. E conta-se também que na estela superior estão inscritos os nomes do esposo e da esposa, em caracteres assírios, e que na parte inferior — dizem ainda — há três estelas com a inscrição: “OS BASTONÁRIOS”[2].
Ciro, ao aproximar-se do local, sentiu admiração da mulher; então pranteou e retirou-se. Nisto, tratou de que eles recebessem as honras que lhes eram devidas; e o monumento fúnebre erigido sobre eles era, segundo se conta, imenso.
Willem de Poorte, Pantheia and Kyros with the Body of Abradates
Assim termina a história. Trágica como a de Pedro e Inês e a de Tristão e Isolda. Panteia desistira de viver. Nem a memória de um marido guerreiro morto no combate, a morte mais prezada segundo o ideal épico. Esta Panteia é outra, diferente da inicial, ela própria o confessou: de corajosa a encorajadora, passara a ser apenas uma mulher cuja vida era uma inexistência sem o seu amor. O épico cede ao trágico.
O narrador de Os Lusíadas, nas estrofes 45 a 49 do canto X, interrompe o discurso de Tétis, no momento em que referia Afonso de Albuquerque, para criticar o excesso da pena que este aplicara ao cavaleiro Rui Dias, a morte na forca, por andar a dormir com uma “moura” de Goa[3]. Camões deplora que tenha sido entendido tal castigo merecedor “a culpa / Que a fraca humanidade desculpa.” E cita exemplos da antiguidade de paixões ilegítimas perdoadas. Entre elas, nas estrofes 48 e 49. Camões lembra a história de Abradatas e Panteia: após a captura da mulher pelo rei da Pérsia, um imediato deste, Araspes, estava a ponto de ceder à tentação que a beleza dela exercia, o que Ciro remediou afastando Araspes numa missão. Conhecemos já o resto. Vamos aos versos do Poeta:
48
…
Sentiu Ciro que andava já abrasado
Araspas, de Panteia, em fogo ardente,
Que ele tomara em guarda, e prometia
Que nenhum mau desejo o venceria;49
Mas, vendo o ilustre Persa que vencido
Fora de Amor, que, enfim, não tem defensa,
Levemente o perdoa, e foi servido
Dele num caso grande, em recompensa.
Partilharam o leito em vida e em morte os esposos; partilha a cultura, a literatura e nós a sua memória.
[1] Cf. Th. C. W. Oudemans e A. P. M. H. Lardinois, Tragic Ambiguity: Anthropology, Philosophy and Sophocles’ Antigone (Brill’s Studies in Intellectual History), Vol. 4, Leiden, 1987, pp. 321-333.
[2] Assim mesmo, literalmente. A posse determinado bastão representa a autoridade e responsabilidade do cargo que desempenhavam esses homens. Assim também, hoje, diz-se bastonário de alguém investido da dignidade de liderança máxima de uma determinada ordem ou corporação, por exemplo, dos médicos, dos advogados, dos notários, dos solicitadores, dos engenheiros, dos enfermeiros. A actualidade guarda ainda, excelentemente embora com discrição, belos resquícios como estes da simbologia das dignidades jurídica e administrativa antigas.
[3] O facto é relatado por Fernão Lopes de Castanheda na História do descobrimento e conquista da Índia pelos Portugueses, III.XXIX.