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Sábado, Dezembro 21, 2024

Uma chance para a Europa

José Sócrates
José Sócrates
Antigo Primeiro Ministro.

Tudo começa nas próximas eleições parlamentares, quando vamos decidir se somos o continente das luzes ou das trevas.Ao longo dos anos, o projeto europeu construiu uma reputação internacional sustentada na defesa dos valores da paz, da democracia política e de uma ordem mundial subordinada ao direito internacional. Esta parecia ser a Europa em que se podia confiar: um soft power de alcance mundial, concentrado no diálogo político e na resolução pacífica de conflitos. Muitos consideram que isso é pouco e para alguns não é sequer poder. Julgo, no entanto, que poderemos concordar num ponto: seria preferível à Europa ter esse papel a não ter papel algum. Se esse capital é reduzido, não ter nenhum é sem dúvida pior.

Seja como for, ou valha o que valha, essa conduta permitiu à Europa desempenhar uma função importante no mundo – a voz da paz, a voz da cultura humanista, a voz da ordem mundial que procura legitimidade no direito e vai além da relação de forças. De repente, esse espaço ficou vago e esse capital político foi deitado fora.

Subitamente, todo o discurso político europeu mudou – a linguagem, as prioridades, até os princípios fundadores parecem esquecidos. Deixamos de falar do modelo social europeu, a coesão desapareceu como objetivo da união e, pior, muito pior, a liberdade individual foi sendo substituída pela ideia de segurança coletiva. O ideal do fim das fronteiras internas parece ter acabado. O direito internacional é agora discutível. Os direitos individuais deixam de ser um bem absoluto para entrar na relatividade da contingência política e do interesse nacional. Este é o vento que sopra – sem nada nem ninguém que se lhe oponha.

O que está a acontecer não é uma simples mudança política, mas uma profunda mudança de cultura política. O poder moderador e arbitral da Europa para quem muita gente se virava em tempos de aflição deixou de se ouvir. Quando é que tudo isto começou? Sim, a crise económica ajudou (mais propriamente a austeridade como resposta à crise), mas, na verdade, a mudança vinha de antes. A Guerra do Iraque e a crise dos refugiados aceleraram o movimento. A Europa humanista, a ideia de uma Europa fiel ao direito internacional, soçobrou. E justamente no momento em que o mundo mais dela precisava.

A crise financeira

O primeiro grande teste à coesão europeia veio com a crise financeira e com ela veio também o seu primeiro e mais clamoroso falhanço. A desgraça ficou evidente desde o início – nem proteção, nem preocupação com a unidade, nem diálogo. O que se viu foi apontar culpas, frieza institucional e indiferença ao sentimento nacional nos países em maiores dificuldades. De um momento para o outro, sob orientação alemã (ou, talvez melhor dito, sob orientação da direita alemã), a política europeia deixou de falar em emprego, em educação, em tecnologia, em ambiente, em energia renovável, para se concentrar num ajuste de contas histórico da direita contra os seus demónios preferidos – as políticas sociais.

A austeridade económica constituiu-se então como única resposta redentora. Primeiro ponto, ela é indiscutível e não tem alternativa – é ditada pela ciência económica. Segundo ponto, ela tem também a sua dimensão moral: é preciso redenção e redenção reclama castigo e sofrimento. Não deixa de impressionar a maneira como se conseguiu transformar uma típica crise de abuso de liberdade mercantil pelos mercados financeiros (os famosos subprimes) numa crise que aponta como culpados os Estados e o excesso de gasto público. Na verdade, a resposta europeia à crise financeira nunca foi uma política económica, mas um programa ideológico.

Todo este desastre só acabou quando, depois de várias catástrofes, o Banco Central Europeu decidiu finalmente fazer o que os alemães não tinham, até aí, deixado fazer – o quantitative easing, copiado da política dos EUA, que conteve a desgraça de muitos países expostos e que afastou os riscos contra a moeda única europeia.

Aliás, a comparação com a estratégia americana é, talvez, a melhor fonte de evidência da irracionalidade económica seguida na Europa. Os Estados Unidos estancaram mais rapidamente a crise financeira e recuperaram mais rapidamente o emprego e o crescimento, enquanto a economia europeia, metida num buraco, continuava a usar a austeridade para escavar e enterrar-se cada vez mais.

O resultado desses anos no projeto europeu está ainda bem presente – a periferia ressentida com o Centro, o Sul desconfiado do Norte, os pequenos desiludidos com os grandes. A cizânia não veio de fora, não veio da ameaçadora Rússia, como tantos apregoavam, mas de dentro e motivada por um grave erro de liderança. O desolador balanço desta política econômica está ainda por fazer dada a cumplicidade da burocracia europeia com a narrativa da austeridade. Mas os estudos sobre o que aconteceu são hoje em dia mais fáceis e a história anda agora mais rápido – não, a crise não veio dos Estados, mas dos mercados. Não, não foi o déficit que criou a crise, mas a crise que criou o déficit. E não, não foi a austeridade que acabou com a crise, mas o fim da austeridade que acabou com a crise.

Os refugiados

Depois da crise, os refugiados, cujo problema verdadeiramente não nasceu em 2015, mas bem mais cedo, na Guerra do Iraque. Esta guerra representou o mais calamitoso dano na credibilidade global da liderança dos EUA. Ela trouxe o elemento religioso para o centro da disputa militar. Ela “abriu as portas do inferno”, o que viria a provocar a desestabilização política em todo o Grande Médio Oriente – Afeganistão, Paquistão, Iraque, Síria, Iémene, Líbia.

No início, liderada ainda pela França, a “velha Europa” resistiu para tentar impedir uma guerra ilegal e sem casus belli. Não foi suficiente. Animada por um fervor quase fanático, a “linha da frente da guerra ao terror” prosseguiu imparável o seu cortejo de escalada, destruição e caos. Passados 16 anos, dessa guerra restam os símbolos da brutalidade documentada em Abu Ghraib e em Guantânamo. A Guerra do Iraque foi um desastre global.

A Europa viria a pagar o seu preço. A guerra ao terror não conteve o terrorismo, mas o espalhou, até nos chegar à casa. Dezasseis anos depois, o mundo tem mais terrorismo, mais medo e mais refugiados. Com eles – o medo e os refugiados – o projeto europeu viveu a sua verdadeira tragédia. As liberdades públicas passaram a ser vistas como um problema e novas leis securitárias trouxeram novas instituições estatais e com mais poderes – mais vigilância, mais controle, mais punição.

Nas palavras de Michel Ignatieff, em The Lesser Evil, é a resposta ao terrorismo, mais que o terrorismo ele próprio, que tem feito pior à democracia. A propósito, e a pensar no Brasil, talvez seja oportuno lembrar que muitas vezes é a resposta ao crime, mais que o próprio crime, que faz pior à democracia. Os Estados não combatem o crime cometendo crimes.

Essas medidas foram cuidadosamente apresentadas em favor da chamada segurança coletiva e assim normalizadas no espaço público, para que os cidadãos europeus pudessem dizer valentemente que não se renderão ao terrorismo e que não alterarão os seus hábitos de vida. Na verdade, já o fizeram.

A crise dos refugiados só veio confirmar a desgraça que se anunciava. Regressaram as fronteiras internas, regressaram os muros fronteiriços, regressou a xenofobia e, 50 anos depois da Segunda Guerra Mundial, a extrema-direita sente-se finalmente legitimada a dizer publicamente o que pensa. A Dinamarca, um dos países mais ricos do mundo, exigiu que os refugiados lhe entregassem os seus pertences antes de cumprir o dever de os acolher – e isso com o silêncio da esquerda. Talvez ninguém imaginasse como era fina a espessura do verniz político que fazia da dignidade individual o valor essencial da cultura política europeia.

As eleições

Voltemos ao ponto crítico. As principais questões políticas da Europa remetem para o antigo dilema: depois de séculos de domínio, qual é o papel da Europa no mundo – simples testa de ponte da superpotência americana na Eurásia ou bloco político aliado com identidade e voz própria? Se a escolha é pela segunda, então o contributo da Europa para a ordem internacional não pode ser outro do que a projeção no mundo do melhor da sua história: o universalismo dos direitos humanos e a defesa do direito internacional, constituindo-se assim como ator político moderador do seu aliado transatlântico (mais necessário que nunca). Por várias vezes esse papel mostrou os seus limites, é certo, mas também é certo que em muitas ocasiões essa duplicidade de papéis provou ser benéfica e produtiva à estabilidade mundial.

O que acontece é que esta opção não é apenas uma questão de política externa, mas de fundamentais escolhas internas. A primeira tem a ver com a unidade europeia: a tarefa mais urgente do projeto europeu (depois da crise, depois do Brexit) deverá ser a de eliminar os focos de ressentimento entre a periferia e o Centro e entre o Sul e o Norte, por forma a promover um novo ciclo de confiança para o conjunto europeu. Nesse caso, as prioridades económicas devem mudar imediatamente e ser substituídas por um novo e vigoroso discurso sobre orçamento europeu, coesão territorial e convergência económica.

A segunda escolha tem a ver com a reputação. Se a Europa quer ter uma presença autónoma na política internacional, então necessita recuperar o prestígio e a autoridade que já teve nos assuntos políticos que fizeram de si uma voz singular no mundo – a defesa dos direitos humanos e do direito internacional. Como parece óbvio, isso traz consigo, igualmente, uma imperiosa alternativa de rumo na sua política interna: recusar o crescente autoritarismo estatal, rejeitar a limitação de direitos individuais, restabelecer a ideia de direito como limitador do poder do Estado.

Eis a nova frente política que julgávamos resolvida na Europa e não está – a ideia da liberdade individual como força legitimadora do Estado. Esta questão é decisiva e precisa ser resolvida, porque irradia em múltiplas direções – para a política de refugiados, que deve ser reorientada para o estrito cumprimento do direito internacional, e para a política de imigração, que deve respeitar a dignidade humana e ser vista não como ameaça, mas como uma área política de cooperação internacional.

Coesão territorial, convergência económica, modelo social europeu, liberdade individual, direito internacional. A experiência destes anos mostrou que nada podemos dar como certo. A crise financeira e a tragédia dos refugiados não foram uma pequena coisa, uma pequena troca de um pouco menos de liberdade por um pouco mais de segurança. Juntos representaram um vendaval político na confiança e uma séria mudança na cultura política europeia. Nestas eleições, novas escolhas serão feitas e começam logo na noite eleitoral: a política europeia dirá o que fazer com a extrema-direita – colaboração ou isolamento. Isso marcará o rumo e a escolha entre as duas faces da nossa história – o continente das luzes ou o continente das trevas. A Europa tem a sua segunda oportunidade.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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