Hoje é um pouco mais fora de tom dizer que a ‘Coreia do Norte’ é uma democracia, mas continua muito em voga negar-se que Assad seja um criminoso em massa que assassinou centenas de milhares de civis do seu país.
1. A guerra da propaganda
A utilização sistemática da distorção, dissimulação quando não da pura falsificação não é obviamente uma invenção dos nossos dias: o que é contemporâneo é o poder do anónimo cidadão – melhor ou menos bem informado, com melhores ou menos boas intenções – de ver a sua opinião ou a sua versão dos factos ser transmitida através das redes sociais quebrando os oligopólios da propagação em massa dos Estados ou dos seus ‘quartos poderes’.
Simon Leys, o mais conhecido sinólogo de expressão francesa (na verdade belga de Bruxelas e de língua materna flamenga) deu a conhecer ao mundo em 1970 a partir de Hong Kong as barbáries da ‘revolução cultural chinesa’, que é talvez o mais vasto exemplo de terror contemporâneo (e que serviu de modelo para o genocídio cambojano, entre outros).
Como ele explicou então, era impossível não ver que se assistia a algo de muito grave (os cadáveres desaguavam do rio das Pérolas às centenas em frente a Hong Kong) mas era necessário naturalmente entrevistar os refugiados na sua língua, em condições de segurança e com os necessários conhecimentos do país para se poder fazer o retrato que ele nos fez dos acontecimentos.
O magistral trabalho de Simon Leys valeu-lhe a excomunhão para sempre pelas elites francesas (teve que emigrar para a Austrália para encontrar trabalho) e o tradicional epíteto de ‘agente da CIA’ vindo não particularmente dos maoistas ou de radicais esquerdistas mas do ‘establishment’ francês que na altura julgava ter descoberto em Mao um comunista dissidente de Moscovo que tinha de ser apoiado.
Em 1970 foi assim possível ao poder em França escamotear os crimes da revolução cultural e a fabricação da fábula maoista, que continua hoje a ser crime revelar cabalmente na China.
Hoje é um pouco mais fora de tom dizer que a ‘Coreia do Norte’ é uma democracia, mas continua muito em voga negar-se que Assad seja um criminoso em massa que assassinou centenas de milhares de civis do seu país, quer depois de os prender e torturar, quer utilizando meios de guerra, nomeadamente bombas de fragmentação e armas químicas.
E no entanto, não é preciso ser um Simon Leys para ver o embuste. Há milhões de sírios espalhados por essa Europa fora, e uma boa parte deles fala inglês. Trata-se apenas de falar com eles, de os ouvir, de reparar na consistência das histórias que nos contam e que se fossem agentes da CIA, da Mossad, ou qualquer outra coisa do género não estavam na situação desesperada em que se encontram.
Se é possível continuar a negar a evidência, isso não se deve só à vasta máquina de propaganda irano-russa ou à cegueira ideológica, mas a muitos interesses instalados, a começar pelos da nossa União Europeia, que por razões de vária ordem preferem esconder a verdade.
2. Das medidas tácticas à concepção estratégica
Tudo indica que a linha vermelha à utilização das armas químicas pelo regime de Assad avançada por Obama foi fortemente impulsionada pela diplomacia americana. As razões de ser da linha vermelha – que de resto tinha já sido utilizada com Sadam Hussein – prendem-se com a necessidade de não permitir a banalização do seu uso.
Creio que é uma preocupação elementar para quem quer que seja que tenha pretensões a assumir uma posição de preponderância no mundo. As armas químicas são de fácil proliferação, como o foi demonstrado tanto pelo ataque terrorista de 1995 em Tóquio ou actualmente a sua utilização pelo Califado, provavelmente provenientes das forças sírias.
Dar um sinal claro de desaprovação ao seu uso – e a medida de retaliação mais óbvia é a do ataque à infraestrutura militar que a utilizou – parece-me de elementar bom-senso, e as críticas generalizadas ao Presidente Obama por não ter autorizado ataques de retaliação parecem-me plenamente justificadas.
Posto isto trata-se apenas de uma medida táctica que não pode ser confundida com a de uma solução estratégica para a questão.
Se a generalidade da opinião pública ocidental apoiou a medida – e a ex-senadora Hilary Clinton defendeu-a mesmo explicitamente horas antes de ela ser desencadeada – vários analistas a criticaram, e nomeadamente alguns dos mais próximos conselheiros de Donald Trump.
É verdade que uma medida táctica se pode facilmente tornar em medida estratégica. Aconteceu isso com o regime de Sadam Hussein. Penso ter sido acertado impedir o ditador iraquiano de bombardear impunemente com armas químicas as populações curdas. O problema é que daí se passou a aceitar acriticamente a narrativa iraniana que inventou a renovação do programa de armas de destruição maciça de Sadam e as suas ligações à Al-Qaeda, lógica que culminou com a desastrosa invasão do Iraque em parceria implícita com o Irão.
E a realidade é que as forças democráticas em campo na Síria praticamente desapareceram e foram substituídas por actores que não inspiram confiança. Constatar que era isso o que o regime de Assad pretendia desde o início não nos ajuda a resolver o problema.
É verdade que Assad não tem hoje qualquer autonomia em relação às forças ocupantes iranianas, e que é mais um peão entre muitos outros. Mas é também verdade que a Turquia se tornou abertamente um Estado islâmico alinhado com a irmandade muçulmana que irá ser agora plesbicitado. Que o reino da Jordânia está cada vez mais prisioneira da irmandade muçulmana. Que o PKK – de longe a principal força política curda com expressão militar no terreno sírio – alinhou com Teerão.
E se alargarmos um pouco o campo de visão, a desolação não é menor. O Irão demonstrou mais uma vez a sua capacidade de comandar o jihadismo sunita ao fazer alinhar consigo a irmandade muçulmana na Palestina (Hamas) e os Talibãs afegãos. O Qatar – que partilha com o Bahrain o comando da quinta esquadra os EUA no Golfo – é o principal financiador internacional da irmandade muçulmana. A Arábia Saudita mantém-se o mesmo desastre estratégico, prisioneira dos seus compromissos com o clero wahabita.
O fim próximo das zonas sob controlo do Califado será desse ponto de vista uma vitória de pirro, não só porque ele já deu mostras de conseguir renascer das cinzas mais do que uma vez (é a ideologia jihadista o que o mantém) mas porque as outras forças jihadistas em presença não são substancialmente diferentes.
Excepção feita a Israel e ao Egipto, não há nos dias de hoje um único parceiro de confiança com quem actuar no cenário de guerra de toda a frente Ocidental (do Mediterrâneo ao Irão) e o cenário não é de resto muito diferente nas outras frentes.
Quer isto portanto dizer que vejo mal como seria possível estabelecer zonas libertadas na Síria para onde fosse possível proteger as populações que fogem do massacre, restando apenas como opção válida a continuação da utilização do Curdistão iraquiano para esse fim, o que pode e deve ser feito com mais força e inteligência.
Mas aqui, estamos ainda no quadro táctico do conflito.
3. Por uma esratégia de combate ao jihadismo
O nacionalismo árabe está morto, e a caricatura que dele faz Bashar Al Assad apenas serve para confirmar o facto. O General Sisi, para além de ter percebido os perigos colocados pela irmandade muçulmana e seus derivados, limita-se a ser um poder militar de transição que não foi ainda sequer capaz de enfrentar ideologicamente a Al Azhar – a mesquita e universidade do Cairo que continua a ser a principal referência teológica do Islão sunita e que continua nas mãos de ideólogos jihadistas – e menos ainda de fornecer uma alternativa sólida às monarquias conservadoras, ao defunto nacionalismo árabe e ao jihadismo.
Enfrentar a ‘irmandade muçulmana’ não se resume a classificá-la como terrorista – o que é redutor, porque o terrorismo é apenas uma das suas formas de acção – nem tão pouco a esquecer que ela é uma rede cuja fragilidade organizativa é gritante.
Enfrentar o jihadismo é entender que se trata de uma ideologia revolucionária, totalitária e global que transcende a irmandade muçulmana e os seus derivados da Al Qaeda e ISIS ou mesmo a sua principal manifestação orgânica: a teocracia iraniana.
O realismo político, hoje encarnado pela diplomacia russa, não reconhece ideologias mas apenas interesses. De acordo com essa perspectiva, a Rússia alimenta hoje um chefe jihadista na Chechénia que lhe será pretensamente fiel, mantém uma aliança estratégica com a teocracia iraniana, e não teve qualquer problema em se tornar agência protectora dos talibans afegãos. O tempo revelará os resultados desta estratégia, que estou convencido serão desastrosos.
Se partirmos de um ponto de vista diferente, aquele que dá às ideologias e aos valores importância específica, é seguro que não podemos pensar em enfrentar o jihadismo com base numa quinta esquadra baseada no Estado refúgio da irmandade muçulmana, ou tendo como parceiro da NATO o sultanato turco.
Da mesma forma que a aliança com a teocracia iraniana tornou desastrosa a operação iraquiana, qualquer actuação militar estrategicamente apoiada em regimes e forças que são pela sua natureza totalmente opostos a qualquer lógica democrática está condenada ao fracasso.
Quer isto que se torna necessário fazer a guerra em todas as frentes, começando pela ideológica, mostrando que é possível a Estados não confessionais responder às legítimas aspirações ao desenvolvimento à paz e à liberdade do mundo onde o Islão é maioritário.
Construir zonas de refúgio à imagem do que é hoje o Curdistão iraquiano, parece-me boa ideia, desde que se assegure que essas zonas não estão sob controlo de nenhuma das facções jihadistas em presença.
Actuar militarmente de forma cirúrgica cada vez que as linhas vermelhas do direito internacional sejam ultrapassadas, parece-me igualmente salutar.
Tudo o resto terá de ser feito com uma perspectiva holística, resistindo à tentação de adoptar soluções fáceis, e começando pelos pontos que são hoje mas seguros: o Egipto de uma lado e o Curdistão iraquiano do outro.