Istar Gozaydin, professora na Universidade de Gediz em Izmir, sentiu a picada dos expurgos da Turquia mais cedo do que a maioria. A afirmação é do jornal The Economist.
“Ela foi demitida em Julho, dias depois do falhado “golpe de estado”, não pelo governo mas pela sua própria universidade. Istar twittou comentários opondo-se ao restabelecimento da pena de morte e condenando a violência evidenciada pela multidão de apoiantes de Erdogan.”
“Talvez pensassem que poderiam escapar à intervenção, suspendendo-me”, disse.
Não poderiam. Dois dias mais tarde, Gediz e 14 outras universidades foram fechadas por supostas ligações com a comunidade de Gulen, ou cemaat, um movimento islâmico sombrio que seria, em parte, responsável pelo “golpe”.
De acordo com o The Economist, a maioria dos analistas estrangeiros acredita que uma aliança de oficiais de diferentes origens tomou parte na “conspiração” para derrubar o Presidente da Turquia, Recep Erdogan.
Mas o governo culpa exclusivamente o cemaat, e a maioria dos turcos concorda.
“O saneamento político que o senhor Erdogan lançou contra o grupo e os seus simpatizantes varreu já mais de 100.000 pessoas. Na semana passada 50.000 funcionários públicos foram demitidos por decreto.
Soldados,jornalistas, académicos, pilotos de avião e empresários foram todos colocados na mira.
Cada vez mais a repressão se assemelha a uma caça às bruxas, muito maior do que o expurgo do senador Joe McCarthy de supostos comunistas na América na década de 1950.
As suas vítimas mais recentes incluem um cantor pop preso pela publicação de colunas de opinião em um jornal gulenista e um dançarino demitido pelo ballet nacional por alegadamente vender a sua casa através de um banco de Fethullah Gulen (o que ele nega).
As autoridades fecharam já milhares de escolas, empresas e fundações. De acordo com um ministro, o estado tomou mais de 4 mil milhões de dólares de activos associados a Fethullah Gulen.
Entretanto, o saneamento político estende-se ao conflito da Turquia com sua minoria curda que, ao longo do último ano, tem provocado duros combates no sudeste do país.
O governo pretende, agora, suspender 14.000 professores por alegadas ligações ao partido dos trabalhadores do Curdistão (PKK).
Quando se inicia uma caça às bruxas, é difícil parar.”
Um mero pregador
O The Economist faz ainda a contextualização da situação que actualmente se vive na Turquia:
“O crescimento do cemaat tem as suas raízes na longa disputa entre o secularismo oficial estabelecido por Kemal Ataturk, o pai fundador da Turquia, e o Islão.
O iman que fundou o movimento, Fethullah Gülen, nasceu em 1941 na parte leste da Turquia.
No início dos anos 70, estudantes pobres juntavam-se para ouvir os seus inflamados sermões, incutidos de sufismo e de nacionalismo turco. Os seus acólitos mais abastados montaram uma rede de fundações, obras de caridade, jornais e escolas que lançaram um grande número de licenciados (quase todos homens) no mundo dos negócios e no governo, testando as fronteiras do dogma anti-islamita de Kemal.
Em 1999, dois anos depois de o exército ter deposto um primeiro ministro islamita, Gülen, sensatamente, partiu para os Estados Unidos. Pouco depois, foi condenado, à revelia, de ter subvertido a ordem secular na Turquia. Um vídeo mostra que incentivava os seus seguidores a tomar o controle do estado.
“Têm que se introduzir nos meandros do sistema, sem que alguém dê pela vossa existência”, diz no video. ” Têm que aguardar até deter totalmente o poder”.
A vitória do partido AK de Erdogan nas eleições de 2002 abriu caminho para a reabilitação de Gülen e, em 2006, foi absolvido em tribunal. Entretanto refugiado num complexo na rural Pensilvânia, Gülen torna-se o porta-voz do Islão iluminado, pregando o diálogo inter-religioso e o valor da ciência.
Professores e voluntários seguidores do cemaat espalharam-se por todo o mundo, abrindo caminho para empresários e diplomatas. (Em 2009, a Turquia tinha 12 embaixadas em África, hoje gaba-se de ter 39. O comércio com este continente triplicou desde 2003).
A partir do AK, os simpatizantes de Gülen apoderaram-se aos milhares de cargos governamentais, substituindo a velha guarda secular e estabelecendo o que os turcos agora chamam de “estado paralelo”.
E começaram a perseguir os seus adversários.
A partir de 2007, os magistrados gulenistas orquestraram julgamentos que levaram à prisão de centenas de oficiais do exército, milhares de activistas curdos, vários jornalistas e o presidente de um clube de futebol.
Os jornais gulenistas elogiaram as detenções. Numa recente entrevista a um jornal diário turco, Ilker Basbug, um antigo chefe militar preso em 2012 afirma ter avisado Erdogan sobre o cemmat.
“Disse-lhe: estamos a enfrentar esta ameaça agora, irá enfrentá-la amanhã”.
Erdogan virou-se contra o movimento apenas quando os seus burocratas se viraram contra si em 2012, quando tentaram prender o seu chefe dos serviços secretos.
Um ano mais tarde, acusou os gulenistas de encenarem um escândalo de corrupção que envolvia políticos do AK. O “golpe” pode ter tido origem nos planos do governo para afastar os gulenistas do exército.
Nos meses que se seguiram, o governo de Erdogan reescreveu a história atribuindo os seus erros aos gulenistas que dele tinham feito parte.
Culpa agora os julgamentos “espectáculo”, o colapso das conversações de paz com o PKK em 2015 e a longa relutância de membros do exército em intervir contra militantes do Estado Islâmico no cemaat. Com o governo a exercer os seus poderes de emergência, não se tornava visível a repressão feita por Erdogan. O novo ministro do interior compara os gulenistas a uma praga e compromete-se a combatê-los “até que nem um único membro reste”.
A paranóia ultrapassa também as fronteiras. Na Holanda, escolas ligadas ao movimento gulenista contrataram seguranças depois de os pais se terem queixado de ameaças contra eles e contra as suas crianças. Na Bulgária, o governo deportou para a Turquia um alegado financeiro gulen, apesar das objecções dos seus próprios tribunais.
A agência estatal de notícias turca Anadolu agita listas negras de entidades e pessoas, país a país, que afirma estarem ligadas ao cemaat.
Um procurador turco acusou recentemente o Vaticano de ter nomeado Gülen como “cardeal secreto”, nos anos 90.
Os turcos seculares não gostam dos gulenistas pois foram alvo das suas purgas nos anos 2000 e apoiaram a cruzada do governo contra o cemaat, de modo muito visível na manifestação de unidade nacional, em Agosto, em Yenikapi, uma praça de Istambul.
No entanto, à medida que as purgas atingem pessoas sem comprovados laços com os gulenistas, outros adversários do AK e mesmo alguns dos apoiantes do partido começam a recear serem os próximos alvos.
“Este não é o nosso entendimento de Yenikapi”, afirmou, a 3 de Setembro, Kemal Kilicdaroglu, o lider do principal partido da oposição, o CHP.
Este mal-entendido pode custar muito caro à Turquia.”
Fonte: The Economist/From the print edition: Europe
Nota da Edição
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