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Sábado, Novembro 2, 2024

Uma má visão estratégica para Portugal

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A miragem do lítio ou do cobalto, tal como equacionada pelo relatório, tem apenas como resultado a renovação da miragem petrolífera, mantendo a obsessão pelo acessório esquecendo o essencial.

  1. Distinguir o essencial do acessório

Num artigo que li nas redes sociais, Rui Tavares fazia uma comparação entre um documento de política industrial do Governo alemão que ele diz ter ficado disponível em Novembro do ano passado (a sua data é de Junho de 2019) com o relatório do Governo português sobre a estratégia de recuperação da economia portuguesa face à catástrofe económica do princípio deste ano.

É absurdo comparar os dois documentos que diferem em tudo, e nomeadamente na questão essencial de um ser anterior e outro posterior à catástrofe, e ridículo queixar-se da excessiva dimensão do segundo em relação ao primeiro enganando-se na aritmética utilizada para comparar o número de páginas.

Contudo, o pior na apreciação de Rui Tavares é a atitude que se encontra em todo o lado de criticar a estratégia portuguesa por ser demasiado prolixa, ter demasiados ingredientes (ele resolve utilizar a alegoria do cozido à portuguesa para variar à da salada russa, mais tradicional na literatura, mas menos adaptada à culinária nacional) sem ter a frontalidade de discordar das opções consagradas.

Pelo contrário, penso que falta à estratégia muita coisa, sem que isso se tenha de traduzir em mais páginas, porque tem por outro lado imensa escrita dispensável, feita de lugares comuns, uns que o merecem ser por se limitarem a ser truísmos, e outros que nem isso; são apenas ideias feitas tidas como evidentes mas que são erros crassos.

Começando por aqui, e indo ao cerne da questão, o documento português parte do princípio de que estamos perante uma ‘crise sanitária’ e eu, por razões que abordei várias vezes nesta coluna no Tornado, acho que não; estamos antes perante uma crise psicótica colectiva baseada numa crise sanitária de dimensões muito menos importantes do que inúmeras outras que enfrentámos nos últimos cem anos mas de impacto psicológico incomparavelmente maior.

Este ponto é decisivo, porque uma estratégia para enfrentar uma crise sanitária é muito diferente da necessária para enfrentar uma crise psicológica.

Posto isto, a estratégia portuguesa reconhece algo de essencial: ‘A evolução da actividade da económica, neste contexto, depende também da evolução da situação epidemiológica, o que é algo que continua envolto em grande incerteza’ (p.11)

Se substituirmos ‘situação epidemiológica’ por ‘situação psicológica’ creio que a frase é precisa e que, por essa razão, deveria condicionar algumas das considerações estratégicas, impondo elementos de flexibilidade, mas aqui o relatório não é consequente. Nada no relatório é flexível e adaptável a cenários possíveis de evolução da crise.

Este plano de debate não é nacional, é mundial (ele encontra-se desenvolvido também em documentos europeus) e por isso creio não ser aqui fundamental.

Há duas coisas que o documento aprofunda para além do lugar-comum e que são relevantes para o debate estratégico em Portugal: a elegia do dinheiro e da falta dele e a substituição do petróleo pelos minerais raros no imaginário colectivo.

  1. Falta de dinheiro, ou falta de capacidade de utilizar dinheiro?

O relatório passa uma esponja sobre a forma como a banca portuguesa derreteu os recursos financeiros portugueses (diz que o problema foi a crise financeira de 2007/2008), fala de uma reforma bancária que não existiu, no meio dos previsíveis lugares comuns em que consegue dizer por um lado que há banca a menos, e a banca que há tem os centros de decisão fora de Portugal, e que portanto é preciso um banco de fomento, mas por outro lado que há também banca a mais: ‘há excesso de oferta’ (p.135) e portanto é preciso limitar a concorrência.

O relatório tem ainda o desplante de dizer, num país em que os cofres públicos foram drenados de quantias faraónicas para ser entregues à banca, que a banca portuguesa sofre de regras fiscais discriminatórias que a prejudicam perante a estrangeira.

Mas deixando de lado estes e outros pontos, a questão essencial é esta ideia de que o problema que temos é o da falta de dinheiro. Não, não há falta de dinheiro! Nunca na história da humanidade houve tanto dinheiro, e nunca se encontraram mecanismos de criação monetária com tanta capacidade como agora, e isso é particularmente verdade na União Monetária Europeia. O que há, é falta de quem nos lugares de decisão – públicos ou privados, a distinção é irrelevante – seja ética, intelectual e tecnicamente capaz de utilizar esse dinheiro eficazmente.

E isto quer dizer que o problema a resolver é outro totalmente diverso do equacionado, é o de saber como é possível incentivar a mobilidade social e criar mecanismos de responsabilização que permitam controlar e renovar quem está em lugares de decisão financeira para estancar a hemorragia ineficaz de dinheiro.

  1. Do petróleo aos metais raros

O relatório inspirasse na passagem de uma economia baseada em hidrocarbonetos a outra baseada em energias renováveis. Baseando-se em análises do Banco Mundial ele diz-nos: ‘A transição energética implicará um aumento exponencial da procura de matérias-primas minerais estratégicas, em relação à produção atual, como Lítio (965%), Cobalto (585%), Grafite (383%), Indio (241%)’ (p. 92)

Na verdade o Banco Mundial dá grande ênfase a outros metais como a platina (a platina, o ouro, o tungsténio e o ruténio têm potenciais importantes nas pilhas de combustível) e faz vários cenários não apresentando este valores como inevitáveis.

Trata-se de cenários possíveis mas que dependem muito dos preços relativos, do valor dado à preservação do ambiente e da evolução tecnológica. Em alguns cenários, não serão esses os metais estratégicos. O afunilamento do relatório nesta temática parece apontar para a pressão para a exploração submarina de cobalto em solo submarino no Mar dos Açores, a Norte do arquipélago, bem como na extensão da plataforma continental de que Portugal possa vir a ter o controlo.

Até agora, os principais interesses revelados em exploração mineral desta natureza foram-no no mar dos Açores em zonas termais submarinas e, felizmente, os cientistas do Oceano locais conseguiram fazer com que essas concessões não fossem autorizadas pelo potencial impacto catastrófico dessas explorações minerais em sistemas ecológicos únicos, frágeis e mal conhecidos (só recentemente foram descobertos).

A enorme guerra nacional que se tem movido para a expropriação de competências regionais dos Açores sobre a exploração ou controlo da exploração dos fundos submarinos – que conheceu novos desenvolvimentos recentes – arrasta-se há quase duas décadas e tem tudo a ver com esta visão de um novo eldorado feito de alguns metais estratégicos que tomam o lugar mítico do petróleo.

Se é verdade que na história recente da humanidade a progressiva dependência do petróleo e a relativa concentração desses recursos em algumas zonas geográficas permitiram que este fosse usado estrategicamente com algum sucesso pontual e no curto prazo, nada nos permite concluir que o mesmo vai acontecer no futuro, agora com o cobalto, o lítio ou a platina.

É apenas um cenário possível a que é necessário dar atenção, mas sem nunca perder de vista que o essencial não é isso, o essencial são as pessoas e a sua capacidade, tema que é abordado apenas com lugares comuns para constar, mas a que não se dá qualquer importância substantiva.

A miragem do lítio ou do cobalto, tal como equacionada pelo relatório, tem apenas como resultado a renovação da miragem petrolífera, mantendo a obsessão pelo acessório esquecendo o essencial.

Há outros temas que merecem ser explorados no relatório, como a da nova febre do hidrogénio, a visão geopolítica do mar e as redes de transportes, mas isso ficará para próximos artigos.

 

 


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