Passados 26 anos da criação do Conselho Municipal das Comunidades Imigrantes e das Minorias Étnicas da Câmara Municipal de Lisboa, cujo presidente era Jorge Sampaio, três mulheres negras foram eleitas para o parlamento português.
As eleições gerais do passado dia 6 para a eleição da Assembleia da República em Portugal surpreenderam tudo e todos com a eleição de três mulheres negras: Joacine Moreira, cabeça de lista do partido Livre, Beatriz Dias, em terceiro lugar na lista do Bloco de Esquerda e Romualda Fernandes, eleita na posição 19, pela lista do Partido Socialista português, são as mulheres negras luso-africanas que passam a integrar o conjunto dos deputados do antigo país colonizador.
Os pioneiros na defesa dos imigrantes e das minorias étnicas em Portugal
Uma amiga minha de longa data, Maria João Marques, ex-presidente da Assembleia Geral da Associação Unidos de Cabo Verde (AUCV), uma das activistas portuguesas que mais defende há muitos anos os direitos dos imigrantes e das minorias étnicas, a propósito de uma notícia sobre a eleição das três mulheres negras para a Assembleia da República, que partilhei nas redes sociais, fez o seguinte comentário:
..acho que te devias rever e orgulhar um bocadinho aqui, uma vez que foste um dos pioneiros desta grande empreitada. Vá lá que tivemos sorte de estar vivos para ver, e espero que honrem os que tanto lutaram para que isso pudesse acontecer. Tu, Fernando Ká, Mário Andrade, António Tavares, Falcão, cada um contribuiu à sua maneira..”.
As palavras desta dirigente associativa foram um impulso para relembrar os pioneiros desta longa marcha pela dignificação dos imigrantes e das minorias étnicas residentes em Portugal e, neste aspecto, não posso deixar de honrar a memória de dois notáveis dirigentes associativos: Fernando Ká e Mário de Andrade.
No passado, refiro-me ao período antes do 25 de Abril de 1974, obviamente, apareceram cidadãos negros a representar o antigo regime. O meu propósito não é produzir juízos de valor em relação a essas figuras. O que me proponho fazer nesta curta reflexão é aproveitar-me das palavras de Maria João para relembrar a história e a luta, organizada, pela emancipação e defesa dos imigrantes e minorias étnicas em Portugal, após o 25 de Abril de 1974, enaltecendo o papel de figuras históricas como Fernando Ká, dirigente associativo luso-guineense e de Mário de Andrade, luso cabo-verdiano.
Estes dois camaradas de luta, e todos nós, lembro-me como se fosse hoje, sempre dissemos que era preciso haver sangue negro na Assembleia da República portuguesa porque a participação não podia ser tão somente a trabalhar nas obras de construção civil e no desporto, também teria que ser ao nível da participação político-partidária.
O Conselho das Comunidades Imigrantes e das Minorias Étnicas de Lisboa
A Câmara Municipal de Lisboa, no início da década de 90, presidida por Jorge Sampaio, antigo Presidente da República, criou um Órgão consultivo da Câmara, do qual fiz parte, com o objectivo de contribuir para a definição das medidas municipais que visavam a integração das minorias combatendo os fenómenos de exclusão e discriminação, o Conselho Municipal das Comunidades Imigrantes e das Minorias Étnicas.
Para além do Vereador responsável pela Área Social, Anselmo Aníbal, membro do Partido Comunista Português, posteriormente substituído por Sara Amâncio do Partido Socialista, este Conselho integrava a Associação Guineense de Solidariedade Social (representada por Fernando Ká), a Comunidade dos Refugiados de Timor (representada por M. Azancot de Menezes), a Associação dos Amigos da Mulher Angolana, a Associação Caboverdeana (representada por Arnaldo Andrade), a Associação Cultural e Recreativa Angolana (penso que representada por António Saraiva), a Associação Cultural e Recreativa de São Tomé e Príncipe (representada por Alberto Neto), a Associação Guineense de Solidariedade Social (representada por Manuela Sequeira), a Casa do Brasil de Lisboa (representada por Carlos Viana) e a Obra Nacional para a Promoção e Pastoral de Ciganos (representada por Fernanda Reis).
Para além das associações de imigrantes e das minorias étnicas, integravam o Conselho, um membro eleito pela Assembleia Municipal, se a memória não me falha do PCP (Ana Sara Brito), e dois cidadãos portugueses, o Padre Manuel Soares e José Leitão (do Partido Socialista), que mais tarde foi nomeado Alto Comissário para as Comunidades Imigrantes e as Minorias Étnicas.
O Conselho Municipal das Comunidades Imigrantes e das Minorias Éticas (CMCIME), de Lisboa, já extinto, produziu uma publicação que inspirou o título deste texto. A publicação era dirigida aos cidadãos de Lisboa que quisessem viver “numa cidade humana e solidária” e também ao imigrante que quisesse sentir-se “parte integrante” da sociedade portuguesa e para o qual contribuía arduamente para o desenvolvimento do país.
A ideia que presidia à criação do CMCIME era dar voz aos imigrantes e minorias étnicas e realçar que muitos dos problemas que preocupavam (e preocupam) os imigrantes e minorias étnicas são próprios da condição específica: a discriminação racial, dificuldades de ligação, atraso escolar, habitação degradada e tantos outros.
Outras forças vivas da sociedade que se destacaram na luta em defesa dos imigrantes e minorias étnicas em Portugal
Para além do CMCIME, também a Comunidade dos Imigrantes e Minorias Étnicas criada pouco tempo depois na Câmara Municipal da Amadora, da qual também fiz parte, bem como o SOS racismo coordenado por José Falcão, a Associação «Olho Vivo», a Associação de Defesa dos Angolanos presidida por António Tavares, a Frente Anti-Racista liderada por Manuel Correia, a Associação Cultural Moinho da Juventude da Cova da Moura (Amadora), o Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral (CIDAC), a Liafrica liderada por Eduarda Ferronha, a Secção de Sociologia das Migrações afecta à Universidade Aberta, e tantas outras organizações, também acreditaram em valores mais elevados, como a solidariedade, participação na comunidade, direitos e oportunidades para todos em Portugal.
Os desafios de Joacine, Beatriz e Romualda
O CMCIME defendeu uma «Proposta de integração» porque dizia: “Lisboa é também a nossa cara”. Os princípios que pautaram os pioneiros da luta dos imigrantes e das minorias étnicas em Portugal após o 25 de Abril de 1974 implicavam o respeito pela identidade própria, pelos valores e pela cultura dos imigrantes e a promoção do diálogo intercultural.
Joacine Moreira, Beatriz Dias e Romualda Fernandes foram eleitas e têm agora vários desafios, não só em relação a Lisboa e na Amadora, mas em todo o território de Portugal. Os desafios implicam propor e aprovar na Assembleia da República políticas de integração social sérias, acções concretas de intervenção social, propor a realização de estudos nas instituições de Ensino Superior e propor iniciativas conjuntas entre entidades públicas e privadas, entre outras acções.
As prioridades destas três deputadas devem ter por objecto a plena integração de todas as comunidades na sociedade, contrariando fenómenos de xenofobia e racismo. Nesta linha de raciocínio terão que responder a múltiplos desafios e mostrar aos seus eleitores que acreditam de forma convicta, tal como dizia Carlos Viana da Casa do Brasil de Lisboa, “na força e na beleza de múltiplas culturas”.
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