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João de Sousa

Sexta-feira, Dezembro 20, 2024

Uma provocação à separação de poderes

Circula por correio eletrónico entre amigos. Ninguém quer revelar quem é o autor.

Primeiro pensei que Carlos Alexandre queria ouvir António Costa na instrução do processo de Tancos, destituindo-o da proteção do cargo de Primeiro-Ministro, como que colocando-o neste processo como um cidadão comum e não como alguém que teve ou não teve acesso a algum conhecimento relevante sobre o caso no exercício de funções públicas e colocando-o perante um juiz de instrução que tem do seu exercício da função uma concepção que está longe de ser institucionalista.

Pensei que Carlos Alexandre queria que essa audição fosse feita em condições que permitissem – nunca se saberia por culpa de quem, porque isso nunca é apurado – uma fuga de informação, uma divulgação seletiva de perguntas e respostas que lhe preenchessem o ego, o fizessem sentir o homem do dia. Dados os seus antecedentes, quiçá o momento em que chamaria à testemunha Senhor António ou pelo menos apareceria no Correio da Manhã um interrogatório à testemunha que lhe permitisse fazer o que a acusação entendeu não fazer.

Nesse quadro, a resposta que recebeu do Conselho de Estado acautelou a dignidade quer da instrução do processo, quer do recato em que o juiz deve intervir, quer ainda a dignidade da função de Primeiro-Ministro. Foi uma rotunda recusa para a justiça-espetáculo e da perversa coligação entre magistraturas populistas e jornalistas sensacionalistas que corroem instituições democráticas e a própria justiça.

Mas a insistência palavrosa mas não fundada de Carlos Alexandre faz mudar a opinião. Ele nunca quis ouvir a testemunha António Costa. Quer apenas produzir o ruído que lhe permita aparecer nas notícias como o justiceiro a quem os poderosos negaram os meios de ação. Se o seu primeiro pedido era desafiante, o segundo é meramente político-mediático (por isso não concretizado) e visa, no limite, negar a Azeredo Lopes a possibilidade de beneficiar da testemunha que indicou, fazendo do juíz no mais típico género populista a vítima dos poderosos. No fundo, este segundo pedido do juíz é um ataque às condições de defesa de um arguido e um gesto cem por cento político destinado ao espaço público.

As magistraturas auto regulam-se. Se permitem, toleram ou encorajam este tipo de atuação é algo que não é irrelevante.

Mas a opinião pública que não denuncie este tipo de atitude é cúmplice da hipocrisia – e talvez, receio – com que no espaço público se fala de justiça e política. Bem sei que o próprio António Costa adora repetir a frase “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política” em contextos em que pretende proteger-se pessoalmente de um juízo crítico sobre a justiça que também lhe compete como Primeiro-Ministro, líder partidário e deputado eleito. Mas desta vez é ele a vítima da tentativa de fazer política em nome da justiça. Este gesto de Carlos Alexandre não foi um desafio ao Conselho de Estado, foi uma provocação à separação de poderes e, se resultar na inviabilização do testemunho de António Costa nas condições que a lei permite, um ataque ao direito de defesa de um arguido.

Depois disto só continuará a pensar ingenuamente a relação entre certos agentes da justiça e a política quem quiser. E nunca esqueçam que para o mundo piorar basta os bons ficarem silenciosos.

 

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