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João de Sousa

Quarta-feira, Julho 17, 2024

Uma tia

Uma tia. Não uma tia qualquer, mas de uma que nunca vi rir com verdadeira alegria, atida ao fel da maledicência e da perfídia com que vivia e se fazia portadora.

Casada com Deus, dizia, nunca casara ou se lhe conhecera homem algum. Moralista e puritana, era o retrato perfeito da beata que por detrás dele esconde toda a urdidura e todo o fingimento. Vivia na ociosidade. Com habilidade sabia converter na mais pura dissimulação todo o facto ou verdade que lhe conviesse. E com mestria, “a menina”, como era apelidada, conspurcava os mais puros espíritos, bastando para isso, que por qualquer razão, deles não gostasse. Comprazia-se na intriga e em denegrir, atulhada no veneno e na maldade. Tudo isto numa posição mascarada de automartírio explorando seres já por si enganadores, dominadores e impiedosos. Entrelaçados e exercendo uns sobre os outros uma pressão subjugadora, com que se emaranhavam e se exploravam psíquica e emocionalmente, num insano e ímprobo intercâmbio de funesta e previsível consequências. 

A pretexto de preocupação e de um respeito a que somente respondia o único objetivo logrado, logo que ela morreu, em manifesta perversidade indiferente e regozijo indisfarçável, nenhuma ficção imitaria tal realidade. Mantendo conversação frívola e zombeteira, enterraram-na, tendo-se logo de seguida feito ao legado por ela deixado. E era vê-lo, desdenhoso e cheio de contentamento, como se padecesse de alguma forma de distúrbio ou desequilíbrio em alto grau. A tia, essa, que se julgava tão astuta e engenhosa no desforço e na legalidade, com sangue venoso à mistura, o automartírio e o autorepúdio desta vez era real, e nos jogos dos destaques terrenos, pela primeira vez se defrontava com a Verdade e a Vida a que nunca fizera jus.

No dia em que ela morreu chorei muito. Chorei por semanas a fio. Nunca imaginara chorar e sofrer assim. Nem eu sei por que chorava, ela que nunca havia sido merecedora de qualquer sentimento de pesar e dor interior meus. Depois passou. Hoje nada mais guardo dela senão dó e compaixão. E dou comigo a pensar no impositivo dos resgastes intransferíveis. Sem regime algum de exceção.

Pobre tia rica.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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