Quinzenal
Director

Independente
João de Sousa

Quarta-feira, Janeiro 15, 2025

Umberto Eco: O cemitério de Praga e os labirintos da história

eco

«L’odio è la vera passione primordiale. È l’amore che è una situazione anomala. Per questo Cristo è stato ucciso: parlava contra natura. Non si ama qualcuno per tutta la vita, da questa speranza impossibile nascono adulterio, matricidio, tradimento dell’amico… Invece si pùo odiare qualcuno per tutta la vita. Purché sia sempre là a rinfocolare il nostro odio. L’odio riscalda il cuore.»
Umberto Eco, Il Cimitero di Praga (2010)

artur-ribeiro-goncalvesRecordo com alguma precisão os tempos que precederam o lançamento do romance inaugural de Umberto Eco entre nós.

As notícias foram-me chegando a conta-gotas e via académica através duma amiga minha e discípula do conhecido semiólogo italiano, o tal que ousara aventurar-se nos difíceis sendeiros da ficção histórica de debuxo policial.

O mais fascinante d’O nome da Rosa (1980) residia no facto singular de se trazer à luz do dia a descoberta do segundo livro perdido da Poética de Aristóteles, aquele que falava da comédia e do riso, modalidade dramática e atitude humana pouco apreciadas pela matriz judaico-cristã ortodoxa então imperante, mais vocacionada para os efeitos penitenciais e catárticos da tragédia e do choro.

Seguiram-se-lhe outros títulos sempre sugestivos, de êxito editorial abonado e leitura estimulante assegurada. As temáticas abordadas estarão na origem deste fenómeno inusitado de best-sellers produzidos em cadeia e a nível global. A polémica filosófica do nominalismo escolástico e religiosa da cabala templária, os mistérios herméticos do ponto fixo da terra e do cosmos, as lendas-mitos medievais do Santo Graal arturiano e do Reino do Prestes João das Índias…

O cemitério de Praga (2010) é a sexta obra da série e centra-se, como as anteriores, na recriação dum momento preciso de ruptura do devir histórico da Europa em geral e da Itália em particular, concretizada no processo de unificação do país, promovido à revelia do Congresso de Viena (1814-1815) e sob os auspícios da Casa de Saboia.

O espaço cénico, mazzimiano e garibaldista, republicano e maçónico, carbonário e revolucionário, está todo documentado nas páginas da efabulação, labirinto de fragmentos narrativos centrados no protagonista e única personagem inventada do enredo, ilustrados com imagens da época para dar uma maior visibilidade ao relato e instrução do leitor. A informação é-nos dada pelo próprio autor e nada nos leva a duvidar da sua veracidade, muito embora esteja ancorada num texto final de «inúteis explicações eruditas» e desenhada num contexto de incontornável traçado irónico.

A forma literária selecionada para dispor os factos passa pelos excertos caóticos dum diário pessoal composto pelo herói/anti-herói convocado, que, movido por uma convencional dupla personalidade, o redige em nome ora do falsário Simone Simonini ora do abade Dalla Picolla. O verso e o reverso, em suma, duma mesma entidade romanesca, marcada ao longo de todo o discurso por uma alegada «euforia amnésica» e não menor «rememoração disfórica».

Gizada à boa feição romântica do folhetim jornalístico de recorte neogótico e assente num manancial de pseudodocumentos autênticos ou habilmente falsificados, parafraseados ou comentados à exaustão, a relação ficcionada do Risorgimento italiano é também um livro que fala doutros livros, populares todos eles no seu tempo mas mesmo assim caídos no mais profundo e talvez merecido esquecimento.

Exceptua-se o caso paradigmático d’Os protocolos dos sábios do Sião (1905), publicado em data posterior à cronologia interna do romance, mas cuja génese doutrinária se questiona ao longo de toda a sua concepção diarística.

O antissemitismo primário das instâncias narrativas, fruto de preconceitos multisseculares, agudizados por nacionalismos oitocentistas ancorados nos meandros dicotómicos do amor e morte, que o politicamente correcto não conseguiu mitigar nos nossos dias de forma adequada, é constante e militante. O desconforto toma conta do leitor, levando-o a confundir os sujeitos internos da enunciação com o próprio autor.

Feito prodigioso de Umberto Eco que, só por si, seria suficiente para aconselhar uma incursão atenta à obra que equaciona a teoria da conspiração judaica tecida no cemitério da capital checa e que levaria à conquista hebraica do mundo.

À distância de trinta anos, tantos quantos os que separam a Rosa do Cemitério, com passagens cadenciadas pelo Pêndulo e Ilha, Baudolino e Loana, o universo imagético do romancista-ensaísta mantém-se intacto.

A sensação de maravilhamento não será exactamente o mesmo, mas o encanto das palavras ditas com sentido continua inalterado sem sofrer a menor beliscadura. Razão mais do que suficiente para esperar atentamente a vinda dum sétimo grupo criativo de aventuras, enigmas e fantasias, para que um ciclo simbólico da totalidade humana se feche e abra caminho a outros mais.

NOTA:
Soube hoje logo pela manhã da morte de Umberto Eco, o inventor nato de heróis da imaginação e de outras histórias feitas com palavras plenas de significados. Lembrei-me da minha descoberta dos universos de criação sempre em expansão da república das letras italianas e universais e de ter em tempos escrito umas linhas a esse propósito.

Fi-lo no Pátio de Letras a propósito d’ O cemitério de Praga e trago-o agora para aqui como testemunho da minha estima pessoal pelo autor e pela obra.

SÉTIMO

Umberto Eco, as ameaças jornalísticas dum número zero inventado

«Non lo nego, ma mio padre mi ha abituato a non prendere le notizie per oro colato. I giornali mentono, gli storici mentono, la televisione oggi mente.»

Umberto Eco, Número zero (2015)

O sétimo romance de Umberto Eco já está à disposição do leitor nas livrarias da aldeia global e dá pelo nome de Número zero (2015). Tão polémico como os anteriores.

Andar pelos labirintos duma biblioteca abacial à procura do mais cobiçado dos livros perdidos de Aristóteles, percorrer à sombra de Foucault os santuários exotéricos da cabala para desvendar os segredos dos templários, naufragar nas águas exóticas dos mares do sul na pista do ponto fixo onde os dias mudam de data, seguir o rasto do Prestes João das Índias para tomar posse dum reino de fantasia utópica prometido por uma epístola imaginária, vasculhar os baús da casa de campo da infância no encalço duma memória perdida, penetrar nos meandros da teoria da conspiração gizada pelos falsos protocolos sionistas de dominação do mundo ocidental, atravessar com uma lupa de inspector de polícia os mistérios mais recônditos da nossa identidade europeia multissecular.

Depois de tudo isto, não contente, o filósofo, medievalista e semiólogo italiano, ensaísta, académico e romancista fabricante de best-sellers garantidos envereda pelos universos actuais da informação manipulada, aquela que nos impede de diferenciar as histórias efectivamente acontecidas das inventadas ao sabor dos interesses mediáticos do momento.

O argumento encontra-se todo sintetizado na contracapa da obra, a toda a largura e comprimento, ocupando vinte e sete linhas bem contadas de texto quase corrido.

Está lá tudo. Literalmente o branco no preto.

Às vezes pergunto-me, na presença destas prácticas editoriais para vender livros, se merece a pena, logo a seguir, ler o que ficou no interior, se já ficou tão pouco por dizer. Os tópicos arrolados remetem-nos para uma frágil história de amor protagonizada por um ghost writer falhado e uma gossip girl inquietante, para as sombras do Gladio, da P2 e da CIA, para o assassínio do Papa Luciani, para os massacres dos terroristas vermelhos e manobras dos serviços secretos, para as chantagens, intrigas e fantasias ignóbeis que fornecem os ingredientes indispensáveis num manual perfeito para promover a venda de jornais.

Fiquemo-nos por aqui e entremos no episódio central que serve de pano de fundo à fábula, o fadário do fundador do fascismo após a queda do regime político por si fundado e da libertação subsequente do país.

O tema do sósia é aqui desenvolvido por Umberto Eco do mesmo modo como George Steiner o havia feito n’O transporte para San Cristóbal de A. H. (1979).

Adolfo Hitler e Benito Mussolini não teriam morrido no final da Segunda Guerra Mundial. Teriam sido substituídos por duplos treinados a criar a ilusão de que o führer germânico e o duce italiano continuavam vivos num qualquer local recôndito do mundo, à espera da ocasião adequada para regressarem ao palco das hostilidades e reconstruírem o reich-impero de braço estendido à maneira romana.

Reminiscências desse velho mito arturiano do regresso do salvador da lei e da grei num momento de crise nacional profunda, o mesmo que entre nós se transformou no contramito messiânico do sebastianismo. Os pormenores discursivos seguidos por estes dois ficcionistas ficam a cargo dos eventuais interessados em desvendá-los nos originais, sem terem para tal de recorrer aos resumos desmotivantes de conveniência.

Digamos que a técnica literária da ucronia* definida pelo obreiro do relato mais recente funciona às mil-maravilhas, permitindo-nos imaginar o hipotético destino do nosso mundo presente se aquilo que de facto aconteceu tivesse acontecido de maneira diferente.

Vivos ou mortos tanto faz. O papel efectivo de mover destinos no eixo europeu duma nova ordem mundial findou nos derradeiros dias de Abril de 1945. A memória dos seus líderes foi sendo apagado pelos sobreviventes. Compulsivamente. A catarse à tragédia representada nesses anos está ainda por fazer. As feridas então abertas estão ainda por sarar. A ameaça de futuras catástrofes paira no ar nos dias que correm.

As histórias contadas pelos criadores da palavra escrita tentam a todo o custo proceder a essa purificação exigida por todos como necessária. As histórias contadas pelas pessoas sem direito a protagonismo literário recusam-na.

Um dia a ablução acontecerá e o sol voltará a brilhar no horizonte com todo o fulgor há tanto tempo almejada pelas gentes.

Miragem dum ver para crer que um porvir incerto mais tarde ou mais cedo materializará.

NOTA
* Umberto ECO, «Os mundos da ficção científica», in Sobre os Espelhos e outros ensaios. [1985]. Lisboa: Difel, 1989, p. 202.

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -