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Sábado, Dezembro 21, 2024

A União Europeia, o Brexit e o futuro

Carlos Ademar
Carlos Ademar
Mestre em História Contemporânea, escritor e professor na Escola da Polícia Judiciária

Mestre em História Contemporânea, escritor e professor na Escola da Polícia JudiciáriaEstive com os passos que entretanto foram dados no sentido da criação de uma moeda única, da livre circulação de pessoas, entre outros, sempre no sentido da criação de uma efectiva União Europeia.

Contudo, a queda do muro de Berlim, que representou a libertação dos povos do leste europeu do jugo ditatorial, veio introduzir alguns elementos que acabaram por ser perniciosos para o projecto europeu. A saber:

  • com a unificação da Alemanha, gradualmente a situação foi-se agravando. O espírito de solidariedade entre os Estados, princípio basilar da criação da CEE, foi perdendo significado até desaparecer – não se sente há anos, bem pelo contrário;
  • o tradicional eixo Paris-Berlim (primeiro Paris-Bona), desapareceu com a emergência de Berlim, como verdadeiro centro de decisão, aonde acorrem os vários chefes dos Estados para se consultarem com o poder alemão;
  • a Alemanha foi assumindo a liderança do processo de desenvolvimento do projecto europeu, claramente, e como dizem os números, privilegiando os seus interesses;
  • a Alemanha dividida foi um elemento agregador e positivo; unificada, tornou-se um elemento centralizador, controlador, dominador, desestabilizador. A Alemanha unida é poderosa de mais para integrar num projecto como o da UE;
  • com a queda do muro de Berlim, ou melhor com a falência do mundo comunista, a esquerda ressentiu-se, retraiu-se e a direita ocupou o espaço sob a forma de um neoliberalismo sem limites, porque tudo lhe tem sido permitido;
  • os partidos que ajudaram a erguer o projecto europeu perderam espaço. Enquanto os representantes da democracia cristã desapareceram, os da social democracia renderam-se ao neoliberalismo, contribuindo para que os direitos dos trabalhadores, conquistados ao longo de décadas, desaparecessem ou se vissem duramente reduzidos;
  • também este aspecto terá contribuído para o desacreditar do projecto europeu, porque deixou de ser o garante dos valores da solidariedade entre os Estados membros, em prejuízo das economias mais débeis, mas que gradualmente tocou e toca economias de maior dimensão;
  • também por força da queda do Muro de Berlim, surgiram dezenas de novos países, resultantes do desmoronamento principalmente da URSS, mas também da Jugoslávia e Checoslováquia, enquanto outros se libertaram do colete de forças controlado pela URSS;
  • na ânsia de retirar estes países da esfera de influência da Rússia, em poucos anos, deram-se adesões em massa à UE, mais que duplicando o número existente, tornando o projecto europeu bem mais difícil de gerir, devido a esse crescimento brusco.

Brexit

Como vimos, a saída do Reino Unido pode ser apenas mais uma acha para a fogueira que já consumia a União Europeia em lume nem sempre brando. Se é verdade que o Reino Unido nunca esteve com os dois pés na União – juntou-se tardiamente à CEE, nunca chegou a aderir ao Euro nem ao Acordo de Schengen, além de ter exigido tratamento especial face aos restantes países -, a sua saída acaba por ter um peso enorme no projecto porque se trata da segunda economia da UE e a sua ausência dará ainda mais peso à Alemanha no contexto da União, com todos os aspectos negativos que isso implica.

Nem vale a pena entrarmos em considerações sobre as razões para a saída, que pautaram em grande parte pelo populismo nacionalista, muito na base do chamado «perigo estrangeiro». Face às incertezas que reinam por força do brexit, acredito que muitos dos que votaram a favor da saída, em caso de novo referendo, votariam pela permanência, mas isso é agora irrelevante.

Dito isto, e lamentando-o, é muito incerto o futuro da UE:

  • com o crescendo da extrema-direita na Europa, inclusivamente, em países fundadores, marcada aquela por um pendor fortemente nacionalista, não disposta a ceder à UE a decisão de questões que digam respeito ao respectivo país – situação indispensável para tornar viável qualquer comunidade de homens ou de países – a situação será explorada demagogicamente, como o foi no Reino Unido, minando a credibilidade da União junto das populações;
  • a diferença de tratamento dos países ricos relativamente aos mais pobres, que, se sempre existiu, notava-se algum pudor, pudor que claramente deixou de existir, minará a UE noutros segmentos das populações europeias, debilitando, por esta via, a sua credibilidade;
  • o sistemático aperto aos países mais débeis economicamente, feito de forma inapelável, cruel mesmo, em claro desfavor dessas economias para que outras se fortaleçam, designadamente a alemã, despertará junto dos povos destes países o sentimento de que estar na UE é, afinal, pior do estar fora e o número dos eurocépticos tenderá a aumentar;

À parte do que fica dito, o reflexo do brexit na UE, além de despertar no imediato muitos europeus para essa possibilidade, muito dependerá da situação que se verificar no próprio Reino Unido nos tempos mais próximos:

  • sabemos que no Reino Unido, a questão está longe de ser pacífica. Aliás, os resultados do referendo, quase um empate em matéria tão sensível, falam por si;
  • se as convulsões internas forem de monta, relacionadas com os possíveis separatismos (Escócia e possivelmente Irlanda do Norte), mas também com o ajustamento da economia à nova realidade, que não se prevê fácil, talvez isso jogue a favor da UE, porque tenderá a arrefecer os ânimos dos eurocépticos;
  • se, pelo contrário, a saída do Reino Unido se der sem grandes impactos negativos, talvez isso encoraje os cépticos, independentemente das suas motivações, e faça aumentar o seu número, podendo levar à debandada e à implosão da UE, tal como a conhecemos.

Uma última palavra, em jeito de resumo, para dizer que, independentemente do brexit, tal como a UE tem vindo a funcionar, com uma forte centralização, quase apropriação do projecto europeu por parte da Alemanha, num contexto de enorme precariedade económica de grande parte dos seus membros e, aparentemente com um único beneficiário, a própria Alemanha, de pouco serve esta UE.

Não se estranha assim que os diversos povos europeus, segundo uma sondagem recente, tenham manifestado muitas dúvidas quanto à actual relevância da UE, atingindo o grau de satisfação índices baixíssimos, face ao papel que o projecto teve no desenvolvimento humano do continente, e mesmo no mundo, abrindo portas a que noutras regiões do planeta projectos similares fossem incentivados e concretizados com maior ou menor sucesso.

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