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Quinta-feira, Dezembro 26, 2024

Universidade perde recurso para o Tribunal Constitucional

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Julgando infracções financeiras

Ao longo dos anos mais recentes foram surgindo na comunicação social referências relativas a irregularidades cometidas na contratação pública de bens e serviços por parte da Universidade do Minho que estariam sob averiguação.

O relatório e dispositivo da sentença do julgamento a que houve lugar no Tribunal de Contas estão já publicados no respectivo sítio na Internet – sentença 017 – 2021 – 3 ª secção –  podendo proceder-se aí à respectiva leitura(i).

Alertamos o leitor que se lembra de outros episódios em que o Tribunal de Contas se pronunciou em sede de recusa de visto ou de qualificação de determinados actos ou omissões como infracções financeiras para que ao longo de vários anos e de sucessivas reformas a configuração do sistema de controlo e sancionamento se foi alterando:

  • o Tribunal passou a estar dotado, para além de uma 1ª Secção por onde correm os processos relativos a fiscalização prévia e de uma 2 ª Secção por onde correm os processos relativos a fiscalização sucessiva, de uma secção especializada no julgamento de processos de efectivação de responsabilidades – a 3a – com juízes conselheiros especializados em direito penal;
  • assim as auditorias realizadas, sobretudo no quadro do exercício de funções de fiscalização sucessiva, mesmo que se traduzam em conclusões desfavoráveis sobre actos de  gestão de uma entidade pública, não implicam necessariamente a condenação dos titulares dos cargos de gestão, quer em sede de responsabilidade sancionatória, com aplicação de multas,  quer em sede de responsabilidade reintegratória, com exigência de reposição de quantias em que se considere que o erário público tenha sido lesado;
  • no caso vertente tratava-se de despesas relativas às gerências de 2015, 2016 e 2017 da Universidade do Minho, que haviam sido objecto de uma acção inspectiva  da Inspecção-Geral de Educação e Ciência suscitada por uma denúncia anónima recebida em Maio de 2017, a qual no Relatório Final, que concluiu em 2018, apurou factos que a representante do Ministério Público junto da 3 ª Secção(ii) entendeu pedir que fossem submetidos a julgamento com efectivação de responsabilidades sancionatória e reintegratória.

A Juíza Conselheira que no Tribunal de Contas proferiu a sentença determinou  a anonimização da generalidade das referências à Universidade do Minho e aos responsáveis pela gestão:

“Aquando da publicitação desta sentença, omita-se o nome das pessoas singulares e das pessoas coletivas, substituindo Universidade (…) e suas abreviaturas por Universidade, e das sociedades por Sociedade …LDA, ou Sociedade … SA.”

O que levou à supressão das próprias referências aos diplomas individualmente aplicáveis à instituição, e da indicação do concelho onde tem a sua sede e da localização dos seus campi.

Todavia, a manutenção das referências às suas Unidades Orgânicas, como a Escola de Ciências, múltiplas vezes referenciada, e o ILCH, permite confirmar que se trata da Universidade do Minho.

Registe-se entretanto que no processo não são os dirigentes postos em causa descritos como “arguidos” ou “réus” mas como “demandados”, aparecendo na publicação identificados como D1, D2, D3, D4 e D5 .

Os factos imputados, que nem todos foram considerados como devendo dar lugar a sancionamento dos dirigentes, incluíram:

  • um conjunto de situações em que o procedimento de contratação adoptado foi o ajuste directo e não o concurso, tendo em algumas delas a sociedade convidada para o ajuste directo ligações com elementos do corpo docente da Universidade;
  • casos em que o recurso ao ajuste directo teve lugar por as aquisições de bens ou serviços terem sido – foi alegado – cindidas para não se atingir o valor que obrigaria a concurso, o que nunca foi admitido quer na tradição legislativa nacional quer na legislação comunitária  que a certa altura passou a ser tida em conta na contratação pública nacional;
  • casos em que a aquisição, pelo seu valor, deveria ter sido submetida a fiscalização prévia do Tribunal de Contas;
  • a contratação de um seguro de responsabilidade dos dirigentes pago pela própria instituição, mimetizando, creio, uma prática comum nas sociedades anónimas em relação à responsabilidade dos administradores.

A sentença como, julgo,  se perceberá pela leitura do Relatório, foi imparcial e, creio que se poderá dizer, leniente: teve-se em conta que nem toda a factualidade que o Ministério Público chamou à acusação se poderia considerar provada e que em relação a alguns factos provados não havia prova das intenções do demandados, na quase totalidade dos pontos em que a acusação deu lugar a condenação considerou existir negligência e apenas num caso, dolo. No caso do seguro de responsabilidade elogiou-se o cuidado dos demandados em pedir parecer jurídico e embora as conclusões deste não fossem atendidas da decisão mestrado, a sentença baseou-se nas licenciaturas dos demandados para os excluir de responsabilidades. Os graus de mestre ou doutor detidos pelos dirigentes sujeitos a julgamento  não foram chamados à colação.

Aspecto relevante foi a não efectivação de responsabilidades relativamente à não sujeição dos processos de aquisição a visto prévio do Tribunal de Contas, uma vez que em 2020 foi aprovada pela Assembleia da República, no seguimento de  proposta do próprio Tribunal, a sua elevação para 750 mil euros, tema que foi discutido no meu artigo “Orçamento suplementar e controlo financeiro público” publicado no Jornal Tornado em  17 de Junho de 2020.

Dado que o valor das aquisições mencionadas no processo furtadas a “visto” do Tribunal de Contas era inferior ao novo limite, aplicou-se aqui o princípio da lei penal mais favorável e as ultrapassagens anteriores deixaram de estar em julgamento.

Aliás é relativamente comum que depois de um esforço de realização de auditorias que dá origem a múltiplos processos de efectivação de responsabilidades uma alteração da lei que torna lícito o que antes era ilícito venha obrigar o Ministério Publico no Tribunal de Contas a arquivar dezenas de processo. Tenho presente uma situação relativa a despesas assumidas pelas Câmaras Municipais sem adequado suporte legal.

No conjunto vieram a ser condenados, quatro dos cinco demandados, por muito menos do que estava incluído na petição do Ministério Público.

A contestação / defesa apresentada  revelou indiscutivelmente habilidade e mostrou tenacidade, constituindo uma fonte de informação importante sobre as dificuldades de gestão da Universidade do Minho, com vários campi e múltiplas unidades orgânicas.

 

Recurso para o Tribunal Constitucional

A sentença proferida na 3 ª Secção do Tribunal de Contas não transitou de imediato em julgado porque na contestação, no estilo “cinto e suspensórios” se entendeu útil questionar a competência do Tribunal de Contas para julgar as infracções financeiras em causa, invocando entre outros aspectos, a autonomia financeira das universidades, constitucionalmente reconhecida, e a circunstância de estar em causa a aplicação de receitas próprias e não de receitas oriundas do Orçamento do Estado.

Ser conhecida e declarada a incompetência do Tribunal de Contas para proceder a julgamento de efetivação de responsabilidade financeira da Universidade (…) por exclusivamente respeitante à afetação e utilização de receitas próprias sem origem no Orçamento do Estado e que não constituem dinheiros públicos;

Deste modo a sentença condenatória não transitou de imediato em julgado.

No entanto na sentença a sua autora, Juíza Conselheira Helena Ferreira Lopes, esclareceu de forma cabal e creio que inatacável a sua posição sobre as questões suscitadas:

  1. As receitas das universidades-fundação pública com regime de direito privado, mesmo quando próprias, são dinheiros públicos, por se tratarem de receitas de entidades públicas cujo fim último é a concretização das missões de serviço público a que aquelas universidades estão afetas (vd. as diversas alíneas do ponto 3.1. desta Sentença, em particular a alínea E). 
  2. Sendo dinheiros públicos, as receitas próprias, tal como as receitas oriundas do OE, estão sujeitas à jurisdição do Tribunal de Contas, nos termos da LOPTC e CRP, designadamente para efeitos de efetivação de responsabilidades financeiras – cf. alínea e) do n.º 1 do artigo 5.º da LOPTC, e artigo 214.º da CRP, em particular a alínea c) do seu n.º 1.). 
  1. O Tribunal de Contas é, assim, materialmente competente para efetivar responsabilidades financeiras dos responsáveis das universidades-fundação pública com regime de direito privado, mesmo na situação em que estes, no exercício das suas funções, afetem e utilizem receitas próprias sem origem no Orçamento de Estado, por tal competência caber na previsão do disposto nos artigos 1.º, n.º 1, e 5.º, n.º 1, alínea e), da LOPTC, bem como do artigo 214.º, n.º 1, alínea c), da CRP. 
  1. O controlo financeiro e jurisdicional, que é simultaneamente público, técnico e externo, levado a cabo pelo Tribunal de Contas em nada colide com o princípio da autonomia financeira das universidades ínsito no nº 2 do artigo 76.º da CRP, que permanece imaculado. 
  1. Tal autonomia não pode ser interpretada no sentido de dispensar qualquer instituição de ensino superior pública daquele tipo de controlo, tal como não isenta os respetivos gestores das responsabilidades financeiras que ao Tribunal de Contas cumpre efetivar.
  1. É que o princípio da autonomia financeira das universidades públicas, quer sejam universidades-fundação, quer sejam universidades-instituto, não constitui óbice ao disposto no n.º 1 do artigo 214.º da CRP, nos termos do qual o Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas, competindo-lhe nomeadamente a efetivação da responsabilidade por infrações financeiras (artigo 214º, n.º 1, da CRP); improcede, por isso, a invocada violação do princípio constitucional da autonomia financeira da universidade em causa, que é uma fundação pública com regime de direito privado.

O recurso para o Tribunal Constitucional foi decidido rapidamente, informando o jornalista Samuel Silva em peça publicada no Público em 4 de Julho último, que foi considerado improcedente pelos juízes António Ascensão Ramos, Assunção Raimundo, José Figueiredo Dias, Mariana Canotilho e Pedro Machete.

A peça está intitulada “Tribunal Constitucional confirma condenação de dois reitores da Universidade do Minho” e permite descodificar a identidade de três dos condenados – o anterior Reitor António Cunha, agora Presidente da CCDR do Norte ao abrigo de partilhas de Presidências de CCDR entre o PS e o PSD, o actual Reitor Rui Vieira de Castro, Vice-Reitor à data dos factos, e o então Administrador, Mestre José Fernandes, agora Doutor, que vinha mantendo ligações à Reitoria, ultimamente como Pró-Reitor tendo estado ligado, indica Samuel Silva, à preparação do PRR.

Sendo a sentença clara até onde podia chegar, note-se que não deixam de subsistir interrogações sobre as relações entre os dirigentes demandados e a sociedade que beneficiou de várias adjudicações por ajuste directo, integrando um antigo Pró-Reitor. Os factos e os nomes em causa foram sendo publicados na comunicação social concomitantemente com o desenrolar da acção da Inspecção-Geral da Educação e Ciência.

 

A mitificação das receitas próprias

Tenho considerado um erro o desbloqueamento imediato pelo Ministro Manuel Heitor da passagem da Universidade do Minho a regime fundacional, que fora travada no tempo de Passos Coelho.

Terá por um lado mostrado a desorientação do Governo de António Costa em relação ao Ensino Superior e a sua incapacidade de concertação com os então parceiros nesse domínio.

Mas mostrou, percebe-se pelos factos e pelos argumentos carreados para o processo, que a Universidade do Minho – ou se quisermos, a sua equipa reitoral, nunca percebeu o alcance do regime fundacional.

Em termos gerais na coordenação da Administração Pública é possível distinguir uma sucessão de movimentos centrípetos (centralização ou re-centralização) e centrífugos(descentralização / concessão de autonomia) que  têm sempre associados vantagens e inconvenientes.

A Reforma Orçamental de Oliveira Salazar em 1928, eminentemente centralizadora, fez aplicar as “normas da contabilidade pública” a todos os organismos da Administração Pública, entendendo-se por normas da contabilidade pública, na altura, também as regras sobre execução do orçamento das despesas(iii).

No entanto uma excepção foi desde logo prevista, a das operações dos estabelecimentos bancários do Estado, e desde aí quer na reestruturação de serviços da Administração Pública em moldes empresariais quer na nacionalização de empresas privadas fundamentalmente orientadas para o mercado, tem feito sentido acolher outras excepções.

A “fuga para o direito privado” veio, contudo a acentuar-se e uma das suas manifestações mais recentes havia sido justamente a criação das universidades – fundação públicas com regime de direito privado, mas em termos gerais a troika impôs uma recentralização, e a Universidade do Minho ao ser admitida por Manuel Heitor no “clube” ficou sujeita às  restrições entretanto criadas.

O serem as despesas suportadas ou não por receitas próprias não é neste domínio relevante, embora tenha havido tentativas legislativas de criar regimes de contratação de pessoal diferenciados em função da origem das receitas que não serão tratados neste artigo.

Aliás as receitas próprias de uma instituição de ensino superior imputáveis a vendas de serviços são em grande medida originadas por meios do Estado – despesas com instalações, equipamentos e pessoal – a quem a Universidade não paga uma “renda”.(iv)

De qualquer  forma os procedimentos de contratação pública são desenhados de forma a obter para, por um lado,  obter para o  organismo comprador as melhores condições, e por outro, como se explica na acusação formuladas pelo Ministério Público  para garantir a observância do “princípio da concorrência” com possibilidade de apresentação de propostas por quem esteja habilitado a formulá-las.

Uma instituição viciada em ajustes directos para os quais apenas são convidadas sociedades ligadas a pessoal “da casa” parece não ter em conta os dados reputacionais inerentes a  práticas desde tipo.

 

Notas

(i) A peça publicada compreende 301 páginas e não inclui numerosos anexos nela citados.

(ii) Existem representantes do Ministério Público junto das 1ª, 2ª e 3ª Secções do Tribunal de Contas, e das Secções dos Açores e da Madeira, todos com categoria de Procurador-Geral Adjunto

(iii) Julgo que este entendimento terá contribuído para que não se tenha aprofundado o tratamento contabilístico propriamente dito das operações efectuadas por entidades públicas mas essa é uma questão que  se coloca noutro plano.

(iv) Também não desenvolverei aqui este ponto.

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