Começaram a surgir as primeiras notícias sobre atrasos na produção que, se preciso fosse, deixaram ainda mais claro que o principal objectivo das farmacêuticas é o lucro a distribuir pelos accionistas e que, uma vez mais, os poderes públicos abdicaram de qualquer interferência que o pudesse pôr em causa.
Perdida à nascença a ideia de declarar a vacina da covid-19 como bem universal, com todos as vantagens que resultaram para a indústria farmacêutica e todos os inconvenientes para os milhares de milhões de habitantes do planeta, e após a euforia com o anúncio das primeiras autorizações pelas entidades reguladores em meados de Dezembro de 2020, de pronto começaram a surgir as primeiras notícias sobre atrasos na produção que, se preciso fosse, deixaram ainda mais claro que o principal objectivo das farmacêuticas é o lucro a distribuir pelos accionistas e que, uma vez mais, os poderes públicos abdicaram de qualquer interferência que o pudesse pôr em causa.
Os governos, americano e europeus, apressaram-se a financiar generosamente a iniciativa privada no processo de investigação e desenvolvimento das vacinas, sem garantirem que esta podia assegurar a respectiva produção nem desempenharem qualquer papel na distribuição do produto final. Depois de convenientemente esquecerem qual o objectivo da iniciativa privada e que existe todo um mundo de distância entre o desenvolvimento de um produto e a respectiva produção industrial, apresentam-se agora como virgens ofendidas brandindo intrincados contractos comerciais, elaborados pelos juristas das farmacêuticas (porque os estados, minados pela ideologia neoliberal, há muito abdicaram de dispor de capacidade para contratar técnicos e especialistas), a ameaçar o recurso aos tribunais… mas acabando mais uma vez a bajular os prevaricadores e a voluntariar-se para melhorar a cooperação, quem sabe injectando mais uns milhões na modernização, senão na instalação, das capacidades produtivas das mesmas farmacêuticas.
Ao abdicar de qualquer papel interventivo no processo de desenvolvimento, de produção e de distribuição, em nome do dogma da excelência e da superioridade da iniciativa privada, os estados ocidentais sofrem agora o vexame de verem russos e chineses a oferecerem-se para suprir as suas próprias incapacidades, a troco de mais uns milhões. E, não só, pois arriscam ainda o completo fracasso do tão propagandeado objectivo de rapidamente se alcançar a imunidade de grupo (vacinando um mínimo de 70% da população) por manifesta falta de capacidade industrial do sector farmacêutico (publicamente assumido com o anúncio, em finais de Janeiro, que o atraso na produção de vacinas da AstraZeneca põe em causa fornecimento da UE) e de capacidade de previsão dos dirigentes europeus que, como refere Jacques Sapir no seu artigo «A economia da produção das vacinas e o exemplo das mobilizações industriais», privilegiaram o factor preço em detrimento do factor velocidade, quando negociaram a aquisição de 1.485 milhões de doses, distribuídas por seis fabricantes, sendo que metade deles (a franco-britânica Sanofi–GSK, a americana Johnson & Johnson e a alemã CureVac-Bayer) ainda nem sequer dispõem do indispensável licenciamento.
A crer ainda no já citado trabalho de Jacques Sapir, a UE terá gasto um pouco menos de 13 mil milhões de euros na aquisição de vacinas, valor incomparavelmente inferior (1,3%) ao custo estimado da crise económica gerada pela covid-19 durante o ano de 2020 (depois de conhecida uma retracção no PIB da ordem dos 6,8%), que se deverá situar próximo do bilião de euros. A poupança é tão inegável quanto está longe de garantir que a UE disponha das cerca de 600 milhões de doses teoricamente necessárias para vacinar (com duas inoculações) os 2/3 da sua população.
O reconhecimento no atraso no programa de distribuição das salvíficas vacinas e a cada vez mais garantida dilação do cenário de imunidade de grupo está a trazer por arrasto a reavaliação do recurso às medidas de confinamento e a demonstrar que a ideia, por muito bem intencionada que possa ser, é insustentável no tempo e apenas assegura uma melhor gestão dos recursos de tratamento – profundamente deteriorados por décadas de desinvestimento em equipamentos e meios humanos – a troco de uma asfixia económica, psicológica, social e educacional, que arrisca levar à morte os sobreviventes da epidemia; isto para não referir o absurdo de procurar a contenção do vírus através do confinamento das populações saudáveis e de persistir em não desenvolver estratégias para o combate à sua propagação logo que se inicia o desconfinamento. Mais de um ano volvido desde o eclodir desta nova epidemia – cuja taxa de letalidade, proporção entre o número de mortes e o número total de infectados, andará na ordem dos 2,2%, com a ressalva de que conhecido o elevado número de casos assintomáticos que não são contabilizados como infectados, o valor real possa até ser bem menor – que nenhum progresso foi feito no sentido da pesquisa de meios de tratamento; algo estranho, mas simultaneamente natural face à opção pela exclusiva orientação no sentido da descoberta de uma vacina, pois o desenvolvimento de novos meios de tratamento implicaria o elevado risco de falência das multinacionais envolvidas na investigação das vacinas governamentalmente financiadas.
O evidente desespero europeu por vacinas contra a covid-19 – que até já originou referências a uma guerra de vacinas com o Reino Unido –, não só ameaça atrasar o processo de imunização na Europa como compromete o programa COVAX, lançado pela ONU e destinado à vacinação dos países menos desenvolvidos; é que de nada serviria que aqueles atinjam a imunidade vacinal enquanto subsistir um enorme reservatório da doença nos países em desenvolvimento, com potencial para continuar a contaminar os países “vacinados” por estirpes mutantes.
Este carácter internacional de uma epidemia que o imperativo da erradicação do vírus obriga a ser abordado por estratégias nacionais, tem que ser também um objectivo global que, no respeito pela soberania individual, implica estratégias de cooperação ou de coordenação entre os diferentes países.
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