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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Vacinas, para que vos quero…

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

As vacinas, como já sucedeu há um ano com as máscaras cirúrgicas e demais equipamentos de protecção individual, estão já a ser objecto de acesa disputa e a ganhar a dimensão de instrumentos de política externa que inclui até a mais despudorada actuação diplomática.

Perdida à nascença a ideia de declarar a vacina da covid-19 como bem universal, com todos as vantagens que resultaram para a indústria farmacêutica e todos os inconvenientes para os milhares de milhões de habitantes do planeta, e após a euforia com o anúncio das primeiras autorizações pelas entidades reguladores em meados de Dezembro de 2020, de pronto começaram a surgir as primeiras notícias sobre atrasos na produção que, se preciso fosse, deixaram ainda mais claro que o principal objectivo das farmacêuticas é o lucro a distribuir pelos accionistas e que, uma vez mais, os poderes públicos abdicaram de qualquer interferência que o pudesse pôr em causa.

As vacinas, como já sucedeu há um ano com as máscaras cirúrgicas e demais equipamentos de protecção individual, estão já a ser objecto de acesa disputa (essa deverá ser uma das principais razões para os atrasos que se estão a registar nas entregas das vacinas) e a ganhar a dimensão de instrumentos de política externa que inclui até a mais despudorada actuação diplomática, especialmente clara quando surgiu a notícia que a República Checa iria receber vacinas de Israel como contrapartida pela abertura de representação diplomática em Jerusalém, enquanto Telavive as recusa à população palestiniana.

No início do surto de covid-19, enquanto os países lutavam contra a rápida disseminação do vírus, a China enviou carregamentos de máscaras e outros equipamentos de protecção para vários países, no que se alguns chamaram de “diplomacia das máscaras” e representou uma oportunidade de ouro para o país se apresentar como um líder global num momento de grande necessidade e de claro apagamento duns EUA apostados em algum isolacionismo e especialmente assoberbados pela epidemia. Notícias sobre máscaras e outros equipamentos com defeitos podem ter manchado aquele efeito, mas à medida que os testes das vacinas (incluindo as chinesas Sinopharma e Sinovac) foram evoluindo, Pequim pôde recuperar a sua imagem internacional e, ao contrário dos EUA, que continuam a braços com uma elevada taxa de propagação e que decidiram priorizar a inoculação dos seus nacionais, a China, com o relativo controle da infecção no interior das suas fronteiras, tem agora maior disponibilidade para distribuir as suas vacinas no exterior e posicionar-se como parte da solução global para a pandemia

Com os países ricos a comprarem quase toda a produção das duas vacinas pioneiras – a da Pfizer-BioNTech e a da Moderna – e a adquirirem vacinas, maioritariamente, fabricadas no ocidente, deixaram em aberto o mercado dos países em desenvolvimento que a China se estará a preparar para preencher (especialmente agora que, com aprovação de mais duas, passa a dispor de quatro vacinas), estimando-se que cerca de 500 milhões de doses de vacinas chinesas tenham sido encomendadas por países estrangeiros (maioritariamente aqueles onde foram realizados os seus testes). Orientada principalmente para consumo interno, mas que também poderá acabar por ajudar os países em desenvolvimento, é a nova vacina que vem de Cuba e que está em vias de ser anunciada já este mês.

O ocidente tem respondido a esta iniciativa com a difusão da preocupante ideia da falta de transparência e da escassez de dados sobre as vacinas chinesas – à falta de uma verdadeira capacidade de intervenção ou até da mera ideia de o fazer – que o governo chinês tem contraposto com o facto de mais de um milhão de chineses já terem sido inoculados com as vacinas experimentais, sem registo de reacções adversas, como prova de sua segurança.

Se é verdade que Pequim terá dificuldade em inspirar confiança no que tem a oferecer sem dados transparentes sobre as suas vacinas e que o sucesso do seu soft power depende muito da eficácia e da capacidade de resistência ao escrutínio científico das mesmas, não o é menos que a conjugação das debilidades ocidentais com a ganância da sua indústria farmacêutica estão a criar nas regiões mais desprotegidas um vazio que alguém irá preencher.

Quando, apesar das primeiras notícias animadoras, a COVAX – uma iniciativa que que inclui a OMS, a GAVI, uma aliança de vacinação global criada pela Fundação Bill e Melinda Gates, e que é apoiada por mais de centena e meia de países, destinada a fazer chegar vacinas contra a covid-19 aos países mais pobres –, continua sem oferecer garantias sérias de cumprimento dos seus objectivos, a ponto do próprio secretário-geral da ONU falar já em “falha moral” para se referir a todo este processo, não se pode estranhar que a par da China, também a Rússia (cuja vacina Sputnik V foi a primeira a ser anunciada e que já está registada em 25 países e em produção em 5 países diferentes), a Índia (uma das grandes potências na produção de vacinas) e até os Emiratos Árabes Unidos se mostrem declaradamente empenhados em aproveitar a crise sanitária em benefício próprio.

Embora exista a preocupação de Pequim poder usar o fornecimento de vacinas para influenciar objectivos geopolíticos (algo em que não será seguramente o único), existe também a possibilidade da China, que visa um plano ambicioso onde espera converter-se no maior fornecedor das nações em desenvolvimento mediante o aumento da sua produção de vacinas para 2.000 milhões de doses este ano e 4.000 milhões até 2022, ter de refrear essa prática para poder responder à necessidade interna de vacinar os seus 1,4 mil milhões de habitantes, sob pena de ter de manter as suas estritas medidas de controle, com um custo económico considerável face ao das economias que atinjam a almejada imunidade de grupo antes dela.

Ao contrário das poderosas farmacêuticas ocidentais, ciosas em preservar o conhecimento a tecnologia e os lucros (até Durão Barroso, ex-primeiro ministro e ex-presidente da Comissão Europeia que agora é presidente da GAVI, afirmou recentemente que as farmacêuticas devem acabar com a pandemia em vez de ganhar mais dinheiro), russos e chineses estão a optar pela celebração de acordos de licenciamento com países que têm capacidades de produção, como a Índia, Singapura, Malásia ou até o Egipto e a Argélia. Esta solução implica transferências de tecnologia, mas garante uma pluralidade de fontes de produção indispensável para atingir os volumes necessários, e constituem uma resposta ao carácter global da epidemia compatível com a soberania farmacêutica e sanitária de cada país.


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