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Terça-feira, Julho 16, 2024

Vamos ao Cinema Águia para a eternidade da infância

Delmar Gonçalves, de Moçambique
Delmar Gonçalves, de Moçambique
De Quelimane, República de Moçambique. Presidente do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora (CEMD) e Coordenador Literário da Editorial Minerva. Venceu o Prémio de Literatura Juvenil Ferreira de Castro em 1987; o Galardão África Today em 2006; e o Prémio Lusofonia 2017.

O meu eterno namoro com o cinema, começou quando eu tinha apenas cinco anos porque os meus pais o frequentavam e nem sei quando terminará, vejam lá! Isto apesar de todas as minhas salas de cinema favoritas estarem fechando e sendo transformadas em igrejas ou shoppings ou pura e simplesmente desaparecendo.

Havia algo mágico ao sentar na escurecida sala de cinema, o público silencioso, totalmente concentrado na história que se desenrolava na grande tela. Conseguíamos entrar em mundos diferentes, fugir todos para a Califórnia com John Wayne, Marilyn Monroe, Fred Astaire ou Gene Kelly, visitar Hong Kong com Bruce Lee, sonhar com Nagasaki  e com Toshiro Mifune, passearem Paris com Alain Delon, navegar até Veneza com Gina Lolobrigida ou Ornela Mutti, dançar, cantar e vencer vilões na luz fantástica de Bombaim com HemaMalini, Rekha, Neetu Singh, Mumtaz, Dharmendra, Amitabh Bachchan, Rajesh Khanna, Dilip Kumar, Shashi Kapoor, Kishore Kumar ou Lata Mangeshkar e apaixonarmo-nos por Madhubala ou Elisabeth Taylor. E nós ficávamos neste mundo mágico até as luzes se acenderem no final do filme, longe dos problemas da própria infância e juventude ou das lutas da humanidade.

Assistir a filmes na televisão não pode nem deve ser a mesma coisa. As pessoas aparecem e desaparecem, a electricidade vem e vai, as pessoas vão mudando de canais, a comida é servida ou ainda come-se continuamente, bebe-se, as múltiplas discussões e conversas familiares estão sempre presentes, e não há como escapar daqueles horríveis anúncios publicitários que são religiosamente repetidos para a fundamental lavagem ao cérebro, a cada dez ou quinze minutos ou até mesmo durante os intervalos, se nós estivermos assistindo a um simples jogo de futebol. Hoje, nós não mais ouvimos aquela simples sugestão evocativa que nos alegrava o coração, “Vamos ao cinema!”.

Morar numa pequena vila, freguesia ou cidadela pacata onde não há mais salas de cinema, esse convite não se ouve mais. Tenho quase a certeza de que não existe nem sequer metade desse entusiasmo nas palavras , “Vamos ver televisão!”

E não são tão poucas as televisões e os canais disponíveis em Portugal! Em Quelimane, infelizmente calculo que sim!

Uma coisa era certa, ir ao cinema, era ir para um mundo mágico depois de passear a pé com os amigos, ou de bicicleta, ou no carro de família. Quando eu vivia em Quelimane, levava quase vinte minutos para ir ao cinema numa das magníficas salas de espectáculo, em especial o Águia do simpático senhor Latifo. Mesmo assim, eu costumava a caminhar debaixo do sol quente e húmido ou da chuva forte e ventos porque ir ao cinema era um evento em si, um intervalo nas actividades mundanas, normalmente era uma ocasião social, depois da missa na catedral nova.

Nós costumávamos encontrar amigos de outras partes da cidade e arredores, e depois do espectáculo, juntávamo-nos a eles num Café (ou  Snack Bar Côco, Riviera, Nicola ou Refeba), para tomar um chá, um refresco, uma laranjada ou um sorvete e para falar dos namoricos e da vida. Um passeio pela marginal e uma visita à Livraria Transmontana durante a semana, costumava finalizar a tarde de maneira agradável. Uma caminhada de regresso a casa debaixo das estrelas, lindas de observar; algo bonito para escutar na Rádio (emissora provincial da Zambézia), sobretudo as brilhantes reflexões dos locutores  Rui Barata e Biriba sobre os  grandes jogos de futebol zambeziano com referências aos grandes craques como João Onofre, Faruk, Cadango, Gastão, Carriço, Mário Amado, Seninho, Banda, Lamarques, Albano, Jarres, Eurico, Pelé, Alimo, Xorró, Xico, Dias, Massada, Ladino, Benedito, entre outros e depois para a cama.

Agora, temos de imaginar que estamos de volta à era do cinema mudo, exigindo menos ruído.

O Águia, a casa de cinema mais antiga de Quelimane, o exlibris, foi inaugurada há muito tempo, no período  do cinema mudo, a preto e branco e neste momento está moribunda depois do incêndio. Resta apenas a majestosa fachada.

Olhar para ela, traz-nos recordações belas  e nostálgicas, mas também alguma tristeza.

Já em Portugal, olhando para o panorama do cinema e para  as grandes salas de cinema, verificamos também que quase todas elas estão também moribundas, com aspecto desolador. Nasceram salas de cinema em centros comerciais, mas longe da magia das antigas salas sempre majestosas, arquitectónica  e esteticamente belíssimas e únicas.

 


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