Um dia um berço, um barco, um vazio na plenitude das mais viráveis esquizóides das planícies do fantástico, sim, esse coisa nenhuma que a vista despreza, esse longe que a alma alcança quase nunca, essa invisibilidade rasurada nas folhas merdosas da livraria mais barata da esquina da casa onde vivo, vivia, passo por lá vezes sem conta apenas para recordar
“vamos falar de literatura”
aqui as primeiras folhas do meu defundado entusiasmo. Resmas nenhumas, papel nada, apenas restos de merceeiro me definhavam e esgrimia com doces gestos a minha nunca sana velácia. Um dia dirão ser apenas um velório.
Livros com verdume ao lado e cinza a encherem-me sei lá de quê
“todos doidos, quem quer ser artista tem os dias contados!”
vozes de longe e perto e dentro,
“preciso apenas de dois metros quadrados em paz!”
apago a luz, incomoda-me tanto a claridade, não entendi ainda hoje porquê, os óculos sei lá onde e a cegueira a caminho, cigarros e álcool, fome de insaciáveis caminhos tentando percorrer estradas inexistentes, sim, existe apenas o que valorizamos, acredita,
“estilhaços vândalos arrebatam e estiolam e como ferve a cabeça”
Mas se o indizível existe, é como o invisível de tardes breves naquele sombrio dissecar de horas para os arrumos dos corpos.
Talvez por isso o belo exista nela, talvez pela possibilidade que todo este embrenho de invenções nos recriem dicionários para recordação futura, alimento suculento onde o tempo nunca será coisa perdida, existir esse neologismo é coexistir com a verdade que às almas estancadas nunca virão, diria aos olhos cegos o que nada verão enquanto se alimentarem de frangos vagos numa página qualquer de jornais diários onde se perde até a vontade de entretenimento, vorazes são as próprias palavras que se consomem a si mesmas, voláteis e fugazes.
Defundadas são quase todas elas. O erimitério de cadafalsos verdes num crescer inventado faz a arte sorrir nos plainos mais ébrios do sonhador. São lentas sei, todas as caminhadas para caminhos repletos de percalços, esses descalçados encantos na boca de víboras sem dentes cuspirem o silêncio oco dos enjoos nesta viagem de soletrar lentamente a palavra difícil que o maremoto nos obriga a orientar e controlar sem gestos o cismo seco ou sismo derrubador de cidades adormecidas.
Se pudesse era contigo que conversava tardes eternas, passava pedaços de século a contar-te enquanto te ouvisse se me castro em cada gole de brandy, a chamusca rodopiada de silvestres lençóis de verdes e secos plainos de plantas incolores decorarem o instante, sim, todo esse tempo dedicado seria tão só isso, tempo ali, pouco me importaria sequer se existem ou não bancos para nos sentarmos colando as vozes na conversa que o tempo nos permitisse, sim, se pudesse, apenas uma aparição nesta cabeça que tenta pensar-te uma tarde inteira em mi e pronto.
Não me recordo sequer se tenho ainda memória para descrever os teus doces soluços quando me dizias palavras que o tempo fará perdurar nas imagens de palavras que nunca escreverei, ouvir-te sacia-me como ler um livro sem páginas, é um absurdo pensar assim, não, é absurdo nenhum, somos afinal o resto de tudo o que sobra nas caminhadas nunca feitas nesta vida que acredito, tem tempo e acabará no seu devido tempo. Até pode acontecer ou esta tarde, paciência. Li-te observando-te nos lábios o baton ruge de tantos silêncios escondidos no coração muda do poeta.
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