Tropas britânicas acantonadas em quartéis com altas torres de betão envoltas em arame farpado; carros blindados da polícia de choque apedrejados por crianças nas cidades-fortaleza do IRA; um alto muro a separar católicos de protestantes ao longo de muitos quilómetros em Belfast, com portões que encerravam à noite, isolando as duas comunidades – este era ainda o cenário da Irlanda do Norte, em meados dos anos 90, quando lá estive em reportagem.
Nas paredes laterais das casas, desenhos e inscrições com os símbolos dos grupos armados de um e outro lado, num clima de confronto que a todo o momento podia explodir num novo atentado, a que se seguiria um outro de retaliação numa cadeia sangrenta sem fim.
Enquanto os nacionalistas católicos reivindicavam a unificação do Ulster com a República da Irlanda, os protestantes, herdeiros da colonização inglesa, maioritários no território, exigiam a continuação do domínio britânico.
O confronto era total e aparentemente sem saída.
E no entanto… pouco a pouco, o impasse sangrento a que se chegara e o crescente desgaste com inúmeras perdas de vidas de um lado e de outro (três mil e seiscentos mortos, incluindo centenas de soldados ingleses) acabou por gerar a consciência de que a perpetuação da violência não traria qualquer resultado útil, apenas aprofundando mais e mais o fosso entre as duas comunidades.
Com a agravante de gerar um clima de permanente instabilidade que por vezes extravasava perigosamente ora para a Irlanda, ora para a própria Inglaterra, como se viu no aparatoso atentado do IRA (Exército Republicano Irlandês) contra Margaret Thatcher, que fez ir pelos ares parte do Grande Hotel de Brighton, em 1984.
Começou por isso, a certa altura, a busca por uma solução
negociada. Primeiro timidamente, em contatos secretos exploratórios, depois em encontros abertos, colocando lado a lado as figuras mais emblemáticas das duas partes.
A excepcional conjuntura política interna e externa favoreceu o entendimento. Com Tony Blair em Londres e Bill Clinton em Washington, os obstáculos foram sendo ultrapassados e finalmente, em Abril de 1998, foi assinado um acordo (Good Friday Agreement) envolvendo os governos da Irlanda e da Grã-Bretanha, por um lado, e as principais forças políticas da Irlanda do Norte (Ulster) por outro.
Um acordo em que se definiram os termos de um auto-governo do território no qual participam até hoje os líderes políticos que antes se guerreavam.
Guerra sem fim e reflexão necessária
Um desses homens – Martin McGuiness, líder do IRA, faleceu a semana passada. Quando jovem, cometeu vários atentados, esteve preso, foi condenado, nunca abdicou das suas ideias, mas acabou, dos anos 90 para cá, por ter um papel-chave nas negociações de paz.
Justamente porque era um líder da linha mais irredutível e absolutamente respeitado pela militância nacionalista, o seu papel foi crucial para “vender o acordo às tropas”.
Para mim, que desde os anos 60, quando rebentou o conflito, me habituara a assistir ao confronto irredutível, ver figuras como o reverendo protestante Ian Paisley (também já falecido) ao lado do católico McGuiness, na mesma mesa e partilhando responsabilidades, foi das realidades políticas mais espantosas (e gratificantes) de toda a minha vida.
A coincidência do funeral de McGuiness com o atentado de Londres da semana passada faz reflectir sobre se na questão do terrorismo islâmico estaremos condenados a uma guerra sem fim ou se, como aconteceu na Irlanda do Norte, também será um dia possível pôr termo aos atentados.
A irrecusável solidariedade com as vítimas e a condenação total e sem ambiguidades do terrorismo não devem impedir que nos interroguemos sobre as causas profundas que estão na sua origem; e, também, sobre o que tem falhado na aproximação a essas comunidades nas grandes capitais europeias, a ponto de nelas se gerar uma espécie de quinta coluna interna do islamismo radical, sempre disposta a atacar-nos pelas costas.
Uma coisa é certa – persistir só no confronto bélico, sem procurar o diálogo com as grandes massas do Islão, já marcadas em muitos países por séculos de cruzadas e colonialismo, só poderá atiçar a guerra de civilizações que não queremos, produzindo mais e mais conflitos sem fim à vista.
Por mais radicais que tenham sido ou ainda sejam as posições em confronto, os benefícios do entendimento – que passa pelo reconhecimento dos interesses e direitos do outro – poderão ser muito superiores aos da guerra.
Apesar da fragilidade que ainda apresentam os acordos de 1998, na Irlanda do Norte, apesar do ressentimento e da dor nunca extinta das famílias atingidas pela violência, é possível superar a intransigência e dialogar – esta parece ser a grande lição de McGuiness.