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Domingo, Novembro 3, 2024

Vera Mukhina e sua obra-prima realista, socialista e feminista

Em 2019, comemoramos os 130 anos do nascimento da escultora Vera Mukhina, a “Artista do Povo”, expoente do realismo socialista. Seu nome já não soa tão familiar nos meios comunistas e feministas. Mas trata-se de uma das mulheres que alcançaram maior prestígio na antiga União Soviética (URSS), sobretudo por conta do monumento “O Operário e a Mulher Kolkosiana” (1937).

De origem aristocrática, Vera nasceu em Riga, na Letônia, em 1889. Na juventude, em meio à ascensão das vanguardas europeias, frequentou mais de uma dezena de cursos e escolas de arte – na Rússia, na França e na Itália. Tinha tudo para ser uma das grandes referências do cubismo, mas a Revolução de 1917 mudou sua trajetória.

Já em 1919, ela cria “O Trabalho Liberta” e “Revolução”. A partir da década de 1920, abraça cada vez mais os ideais da nascente União Soviética. Remonta a esse período a escultura “Camponesa” (1927), sucedida por obras como “Fertilidade” (1934) e “Pão” (1939).

Em 1935, quando Stálin aceita o convite para enviar, pela primeira vez, uma delegação soviética a um grande evento cultural – a Exibição Internacional de Artes, Ofícios e Ciências –, Vera recebe a mais importante encomenda de sua carreira: esculpir uma obra capaz de traduzir à altura os valores e os avanços da Revolução Russa. A obra ficaria exposta na entrada do Pavilhão Soviético e seria inaugurada em dois anos, já que a Exibição Internacional estava prevista para 1937, em Paris.

Socialismo e pujança

O responsável pela montagem do Pavilhão Soviético é o arquiteto ucraniano Borís Iofan, um dos artistas mais renomados do realismo socialista. Com um projeto inspirado nas estátuas de Harmódio e Aristogíton – o casal que derrotou a tirania em Atenas, na Grécia Antiga –, Iofan vence o concurso para a Exibição Internacional. Entre os elementos de seu projeto, sobressaem a foice e o martelo, ícone máximo do movimento comunista internacional, devidamente estampado na bandeira soviética.

De resto, não havia símbolo mais apropriado e conhecido para traduzir a pujança da nação socialista. Nos anos 30 do século passado, sob a liderança do Partido Comunista, a URSS era o país que mais crescia no mundo. Enquanto potências como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha mal conseguiam igualar os patamares econômicos pré-Crise de 1929, os primeiros planos quinquenais implantados por Stálin (1928-1932 e 1933-1937) faziam história.

A produção industrial já era oito vezes superior à de 1913. Os altos investimentos em ferrovias e hidrelétricas promoviam uma acelerada modernização da infraestrutura do país. No campo, a classe dos kulaks – que detinha boa parte das terras agricultáveis – era eliminada. No lugar, emergiram fazendas de propriedade estatal (os sovkozes) e cooperativas agrícolas baseadas na economia coletiva (os kolkozes).

É nesse contexto que Stálin enxerga a Exibição Internacional como vitrine privilegiada para divulgar os feitos soviéticos. Nas mãos de Vera Mukhina estava, portanto, a missão de traduzir o êxito do socialismo numa obra de arte tão emblemática quanto imponente.

O martelo/homem e a foice/mulher

A despeito de compartilhar dos princípios do regime bolchevique, Vera se mostrava algo desconfortável com as formas tradicionais de representação da mulher na iconografia soviética. Na visão da escultora, ao se associar, invariavelmente, o martelo ao operário (ao masculino) e a foice à camponesa (ao feminino), o resultado punha homens e mulheres em condições de desigualdade.

A figura masculina era continuamente representada comandando o martelo que batia na bigorna, sempre tendo a mulher na posição subalterna de segurar a matéria-prima, numa atitude mais passiva do que a figura masculina, além de ficar atrás do homem. Essa característica liga o martelo à simbologia masculina”.

A foice também estaria carregada de significados, na medida em que o modelo de cabo curto (a foicinha) prevalecia nas representações. Segundo Tavares, “embora a foicinha possa ser utilizada teoricamente por homens e mulheres, o fato da pessoa ficar agachada para utilizá-la (…) demonstra uma atitude de submissão (…). Nos pôsteres soviéticos, por exemplo, quando o homem segura uma foice, é um outro tipo específico, com um cabo longo, o gadanho, que possibilita ao homem trabalhar de pé”.

Ao trabalhar na encomenda para a Exibição Internacional, Vera Mukhina mantém o paradigma “foice/mulher e martelo/homem”, mas insere uma nova perspectiva, ao atribuir altivez similar na representação da camponesa e do operário. O resultado de seu trabalho é “O Operário e a Mulher Kolkosiana”.

Do ponto de vista técnico, já é uma obra inovadora – o primeiro monumento no mundo feito em metal soldado, uma megaestátua de aço inoxidável, em estilo art déco, com 24,5 metros de altura e mais de 70 toneladas.

No plano simbólico, mais audácia: o trabalhador e a trabalhadora erguem seus instrumentos, formando, no ponto mais alto da escultura, a junção da foice e do martelo. Tanto o operário quanto a camponesa estão em posição de movimento, como se caminhassem adiante de modo sincronizado, destemido e vertiginoso.

A mensagem era evidente: a crer no simbolismo da obra, homem e mulher estariam – ou melhor, deveriam estar – em paridade no processo de edificação do socialismo. Graças à sensibilidade de Vera Mukhina, a obra-prima do realismo soviético lançava a bandeira da igualdade de gênero – um dos pilares do movimento feminista que mais ganhou corpo ao longo do século 20.

De pé, ainda!

A repercussão do monumento alçou Vera à fama imediata e à posteridade. Só para ser levado de Moscovo a Paris, “O Operário e a Mulher Kolkosiana” foi desmontado em 65 partes e transportado num total de 28 vagões de trem.

Na Exibição Internacional, aberta, enfim, em 25 de maio de 1937, o Pavilhão Soviético ficou frente a frente com o Pavilhão Alemão, onde o arquiteto Albert Speer realçou a escultura de uma águia com a suástica nazista. Tudo na Avenida Trocadero, às margens do Rio Sena e diante da Torre Eiffel!

De volta à União Soviética, a obra foi restaurada e instalada no parque temático VDNKh, sobre um pedestal de “apenas” 10 metros, para desgosto de Vera. Segundo a artista, era fundamental que “O Operário e a Mulher Kolkosiana” ficasse em uma base similar, em tamanho, à entrada do Pavilhão Soviético. “A escultura é parte inseparável de toda a estrutura”, afirmou.

Apesar da contrariedade, Vera Mukhina continuou atrelada ao destino do monumento. Em 1941, graças a seu renomado trabalho, ela recebeu o primeiro de seus cinco Prêmios Stálin. Dois anos depois, foi agraciada com a Medalha Artista do Povo da União Soviética, um dos mais importantes títulos honorários concedidos pelo regime.

No ano de 1947, a estátua foi transferida para o Centro de Exposições da Rússia, na Avenida da Paz, em Moscovo, onde permaneceu em exposição permanente. Em 1948, a pedido da Mosfilm (a estatal que cuidada do cinema soviético), Vera construiu uma réplica em gesso de sua estátua, em tamanho reduzido. A imagem passou, desse então, a ilustrar a vinheta dos filmes produzidos no país.

Vítima de uma angina, Vera Mukhina faleceu em 6 de outubro de 1953, sete meses depois da morte de Stálin. A preservação de seu legado foi prejudicada devido aos vínculos entre a artista e o líder soviético. Depois do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética – que deflagrou o revisionismo e lançou a campanha antistalinista –, o regime deu curso ao processo de “esquecimento” de diversos representantes do realismo socialista.

Mas a arte de Vera Mukhina sobreviveu à perseguição. Em 1985, um museu dedicado à sua vida e obra foi inaugurado na Ucrânia. Em 2009, depois de seis anos de um rigoroso trabalho de restauração, “O Operário e a Mulher Kolkosiana” foi reinstalado no VDNKh, em um pedestal ainda maior – de 34,5 metros –, atendendo ao desejo de sua autora.

Com a crise do bloco socialista, no período de 1989-92, inúmeras estátuas de Lênin e Stálin vieram abaixo na antiga União Soviética e no Leste Europeu. Um sem-número de artistas recebeu a pecha de “malditos”. Mas “O Operário e a Mulher Kolkosiana”, o mais vigoroso fruto do realismo socialista, a obra-prima das artes soviéticas, permaneceu de pé. Quem vai a Moscovo encontra nela uma das mais belas reminiscências da jornada bolchevique. 


por André Cintra, Jornalista    |  Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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