Esquecer que tivemos uma ditadura seria matar de novo os 190 brasileiros e brasileiras assassinados por forças do Estado, e os 243 desaparecidos, dos quais apenas 33 tiveram seus despojos identificados nas últimas décadas. Os parentes de outros 210 nunca souberam como e onde eles morreram, nem o que foi feito de seus corpos, que nunca puderam chorar nem enterrar. Eles são a ferida que ainda sangra, exigindo verdade e reparação, nessa hora em que recordamos os 60 anos do tempo iniciado com o golpe militar de 1964.
Esquecer a ditadura seria esquecer ainda que houve tortura, cassações de mandatos e de direitos políticos, banimentos de brasileiros para o exilio, que outros buscaram na certeza de que morreriam se ficassem no país em que nasceram. Que houve opressão, cassação do direito ao voto, vigilância obscena da vida de cada um. Tudo isso e muito mais aconteceu para que um dia tivéssemos a democracia.
A ditadura não pode ser esquecida também porque sua volta nos rondou recentemente, e por pouco ela não se impôs, ainda que com outros trajes. Se o 8 de janeiro foi uma tentativa de golpe patética e até ridícula, no primeiro de abril de 1964 tivemos um golpe vitorioso e vergonhoso.
Vergonhoso porque as instituições civis também o legitimaram. Depois que os militares colocaram as tropas na rua, com o presidente legítimo João Goulart dentro do país, voando para o Rio Grande do Sul onde tentaria organizar a resistência com a ajuda do governador Leonel Brizola, um abominável presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, proclamou: “declaro vaga a presidência da República”.
– Canalha, canalha! – gritava no plenário o líder do governo, Tancredo Neves, enquanto Darcy Ribeiro, ministro chefe do Gabinete Civil, tentava em vão entregar à Mesa um ofício informando sobre a presença de Jango em terras brasileiras.
Eram duas e quarenta da manhã quando a caravana golpista, acompanhada por alguns militares e também por um diplomata norte-americano, Robert Bentley, entrou riscando fósforos no Palácio do Planalto, que estava sem energia, e realizou uma solenidade macabra dando posse ao presidente da Câmara, Raniere Mazzilli.
Na sequência, houve também um presidente do Supremo Tribunal Federal, Ribeiro Costa, que legitimou a farsa golpista do Congresso. Dez dias depois o primeiro general, Castelo Branco, seria eleito indiretamente presidente da República. Foi sucedido por outros quatro generais ditadores ao longo dos 21 anos seguintes. As eleições presidenciais de 1965 foram desmarcadas e somente em 1989 os brasileiros puderam novamente votar para presidente.
Os golpistas de 2023, contra Lula (pois isso precisa sempre ser dito) não contaram com a ajuda do Congresso, nem do Supremo e nem dos Estados Unidos. Nem por isso, estamos a salvo, porque o espírito do fascismo continua solto, animando as hordas bolsonaristas e seus nichos militares.
Nestes 21 anos, não nos foi garantida toda a verdade sobre os 21 anos, embora a CNV tenha feito o possível para resgatá-la. Seu relatório é a luz maior que já tivemos sobre o período, e isso gerou alto custo político para a ex-presidente Dilma.
Não tivemos toda a reparação, pois a Comissão Nacional de Mortos e Desaparecidos está onde foi posta por Bolsonaro, na inatividade, e a Comissão da Anistia não consegue avançar no exame dos processos ali parados.
A memória, ninguém pode impedir que a cultivemos, para que outros não venham novamente trair a democracia. Os que tentaram o golpe no ano passado não podem ser anistiados. Seria traição à verdade.
Mas eu compreendo que o presidente Lula tenha recomendado que isso não fosse feito pelo Governo, e sim pela sociedade civil. Nos idos da transição, o presidente Sarney me disse um dia que se sentia carregando uma vela, protegendo-a do vento com a outra mão. Lula também está conduzindo uma travessia, a do quase golpe para a segurança democrática, e entendeu que deveria ter este cuidado. Que seja, no governo. Aqui fora, na sociedade, devemos repetir “ditadura nunca mais”.
Texto original em português do Brasil