Poema de Filipa Vera Jardim
Viagem inventada em sons inexistentes
Limitei-me a contar os carris, que são sempre dois e, transportam o olhar para o horizonte mais ou menos dilatado. Mesmo assim, reconheço que por vezes, me desconcentrei desse cenário sem rumo, para adivinhar nos rectângulos metálicos das janelas, desfeitos do quadrado original, por pedaços retorcidos, rostos quedos, que nunca devem ter existido. Ou a terem existido, existiram unicamente vislumbrados.
Bocados de olhos, misturados com pestanas ensonadas, ombros descaídos e mãos pousadas em colos, sem história.
Será?
Pus-me a pensar se os colos teriam histórias. E se as mãos as segurariam ou se as deixariam escorregar por entre os carris. Não poderia nunca saber…a não ser se de repente, as carruagens se enchessem de sons, que são os invólucros das histórias. Sons de lágrimas a rolarem, de gargalhadas desabridas, de murmúrios sussurrantes.
Mas não havia sons. Só se os inventasse…
Não era fácil inventar sons, adaptá-los aos rostos, às pestanas, aos colos e alinhá-los entre tantos vagões.
Por isso, deixei-me ficar a olhar os carris, paralelos até à curva, que não se quer por companheira, sem imaginar um único destino. E, muito menos o retorno.
O tempo ficava-se por ali.
E eu deixei-me ficar com ele…