Um século depois de ter sido concebido, Policarpo Quaresma, o herói trágico-cómico de Lima Barreto que queria implantar o tupi como língua nacional do Brasil em vez do português, acabando por ser fuzilado, parece estar em vias de obter vingança póstuma: a confirmar-se uma directiva do Ministério da Educação e Cultura (MEC), aprovada no início deste ano, a literatura portuguesa deixará de ser obrigatória no ensino médio brasileiro.
A avaliar pelas reacções negativas de especialistas da área, não se sabe muito bem quem elaborou o documento Base Nacional Comum Curricular do qual consta aquela proposta.
Por outro lado, embora aberto a sugestões pela internet, não houve propriamente um debate aprofundado sobre o assunto, pelo que também não se conhecem os pressupostos em que a iniciativa se fundamentou.
Mas não andaremos longe da verdade se considerarmos que o raciocínio que presidiu ao texto do MEC foi o mesmo ou muito próximo daquele que inspirava Policarpo: tendo sido Portugal uma metrópole colonialista europeia que explorou e oprimiu os povos nativos de diferentes continentes, estaria mais do que na hora de suprimir do ensino a sua literatura, da qual Antônio Cândido disse aliás não passar de “um ramo secundário” da europeia.
Suprimi-la do ensino obrigatório brasileiro seria, portanto, mera questão de justiça histórica e até… literária!
A lógica parece férrea e irrefutável. Dar voz aos oprimidos, recuperar as raízes índias e africanas, rejeitar o opressor – não é isso afinal que o país vem fazendo, pelo menos desde a célebre Semana de Arte Moderna de 1922?
Não tem sido desde então Portugal sistematicamente obliterado da memória brasileira?
Não têm sido os Portugueses apontados à execração nacional como origem de todos os males que afligem o Brasil e por isso vítimas de todas as anedotas, em que são descritos como aqueles que fazem tudo ao contrário e nada dá certo?
Não foi Sérgio Buarque de Holanda que insistiu na necessidade do país “cortar com as raízes ibéricas” para se poder desenvolver?
Pois se há que cortar que se corte… Já se cortou muito a memória de Portugal no Brasil, é verdade, a ponto da generalidade do povo nem sequer relacionar, hoje, a língua que fala com aquele pequeno país europeu à beira-mar plantado de onde em 1500 chegaram as caravelas.
Mas que melhor maneira de completar o corte do que suprimir o conhecimento da sua literatura? Aí está uma tarefa patriótica digna de Quaresma!
O Brasil ainda à procura de si próprio
Tem, no entanto, um pequeno senão – a língua do Brasil, goste-se ou não, é a língua portuguesa.
E portuguesa é também boa parte da base cultural do país, incluindo muita da sua cultura popular, mas também da literatura culta e até da MPB, que por essa via vão beber a fontes europeias medievais como as cantigas trovadorescas e as novelas de cavalaria.
Prescindir dessas raízes – seja em nome da pós modernidade, seja de sentimentos nacionais equivocados à la Policarpo – seria um enorme tiro no pé.
No fundo, o que esta proposta do MEC vem mostrar é que o Brasil, quase 200 anos depois da independência, ainda continua às voltas com a sua própria identidade.
Tendo, primeiro, durante o império e com o romantismo, exaltado o índio, elevado por compensação simbólica a verdadeiro expoente da Pátria; e havendo depois, a partir da abolição e com a República, resgatado o negro, num movimento que ainda continua hoje com o estabelecimento de quotas no ensino e o estudo da história africana, o Brasil parece não saber bem o que fazer com a herança portuguesa, “a herança do colonizador”.
Ela é tão profunda que ele tinha, compreensivelmente, que negá-la para se poder afirmar. Mas a língua e a cultura são tão constitutivas do próprio ser – uma segunda pele – que não dá para as liquidar.
Tentou-se, então, denegrir e esquecer… Em vão: cada vez que o Brasil se olha ao espelho, quando menos espera – lá está reflectido o indesejado Português…
Incapaz de cortar esse nó, o Brasil vive um perpétuo matar do pai jamais inteiramente consumado.
Porque insiste em auto-flagelar-se por ter sido colónia, não conseguindo enxergar-se como algo diferente que também foi (incluindo sede do império luso—brasileiro, e por isso herdeiro legítimo de boa parte da história portuguesa), o Brasil não sabe o que fazer do fantasma português, que perpetuamente tenta exorcizar e eternamente o persegue.
Deixar ao aleatório arbítrio das vontades individuais o conhecimento de Caminha, Camões, Vieira, Eça, Pessoa e Saramago, entre muitos outros? Que vantagens tiraria daí o Brasil, que já não inclui no ensino as grandes obras da literatura universal?
Lá no acento etéreo das Letras em que repousa, Quaresma pode até sentir-se vingado com a proposta do MEC. Mas essa vingança póstuma, a consumar-se, não passará de uma vitória pírrica – rejeitar as próprias raízes (incluindo aquelas que menos se desejam) nunca será a melhor forma de se afirmar.
Aquilo de que todos os países de Língua Portuguesa precisam é de reforçar o conhecimento mútuo, incluindo das suas literaturas, defendendo essa preciosa herança comum no plano internacional como traço distintivo das respectivas identidades. Mais conhecimento, não menos.
E sem complexos – nem de colonizador, nem de colonizado.