Tive reações muito saudáveis e até uma que tolero sem violência, a de um amigo que já me habituou a não entender alguns pontos de vista, mesmo simples, por ser ele mesmo virulento e intolerante. Os restantes contribuíram para o contraditório – que no fundo é sempre o objetivo de quem escreve publicamente.
Sem fugir muito ao tema, aqui me têm a falar de um exemplo de violência e de intolerância, do campo da violência emocional, mas também do intolerante político e que teve origem, surpreendentemente, num país que consagrou a liberdade e os direitos.
Falo da intervenção policial numa praia de Nice, onde o fundamentalismo laico mandou uma muçulmana despir a sua burca, em nome de uma opção tomada em âmbito de lei e que no caso esqueceu liberdades individuais e religiosas e sobretudo liberdade de género, pois o cerne da questão, esse mesmo do direito da mulher a ser mulher, nem veio à baila.
Nos tempos dos nossos avós, existiam nas praias os cabos de mar, figuras policiais que zelavam pela moral e pelos bons costumes. Ao contrário do que se passou em Nice, mandavam as pessoas vestir-se (o corpo era pecado) e não despir-se (porque ocultá-lo é atentatório).
O burkini em terras de França exaltou o imaginário
Cedendo a marcas do terror, os franceses já haviam tomado posições extremistas, como retirar os crucifixos das salas de aula, tapar estátuas com sinais religiosos para receber um líder iraniano, legislar sobre o tema expurgando o essencial: que é na tolerância e na coabitação dos símbolos que os povos se aproximam – e não na sua erradicação.
Colocar uma burca ou um burquini sobre a pele saudável de uma sociedade laica só a transtorna.
A polícia em Nice agiu em boa fé legal e com o respaldo jurídico que a apoia. Mas contribuiu para a diferença e para o conflito. Para o inflamar das imaginações e para a atração dos fundamentalismos mais variados.
A começar, há que dizer que não é correto, sob o ponto de vista teológico, aceitar que o Corão imponha o tapar do rosto. Como a Bíblia nada impõe sobre o mesmo mote e sabemos como as católicas usavam (usam) véus e as noivas não os dispensam na sua cerimónia mais elevada, tapando a cara e descobrindo-a para o primeiro beijo.
Que em alguns pontos do mundo a mulher seja vista como objeto – eis um dos principais pontos da crítica, da luta, da emancipação. Mas sabemos bem como em muitas religiões – para além da Muçulmana – isso acontece e de forma por vezes radical, ofensiva e em casos extremos mortal (as notícias de violência doméstica são diárias e exemplificativas).
O Corão, já agora, aconselha a que as mulheres não exibam os seus adornos em público: a palavra usada é zinah (adorno). Que não mostrem os seus atrativos (zinah) publicamente. Podem fazê-lo em privado, nas suas próprias casas e perante as pessoas mais chegadas, como os pais, sogros, tios, outras mulheres e crianças (corrijam-me, mas não me lembro de se referir o marido).
Este tipo de limites faz emergir todo o tipo de interpretações – estive em países onde havia praias só pra mulheres, guardadas por mulheres (fortemente armadas) onde por certo essas mulheres se bronzeavam, tonificavam e divertiam ao sol sem roupa ou com pouca (não sei nem testemunhei).
Assisti em países muçulmanos e noutros (até em Portugal) como a mulher muçulmana gosta de adornos e de os comprar – e não vi nenhuma delas adornada, pelo menos como vejo as mulheres não muçulmanas, em liberdade, fazê-lo pelo mundo fora.
É por isso, também, um aspeto com responsabilidades sociais, este.
Há praias portuguesas onde se proíbe o topless – noutras onde se pratica o nudismo
O longo caminho da secularização, do laicismo, e da interpretação da moral, está longe de se ter cumprido. Hoje, no ocidente, pouca coisa será imoral – e muita é ilegal.
Não há menção no Alcorão que o hijab (o véu islâmico) tenha de cobrir a face.
Todos os juristas e teólogos muçulmanos concordam que, de acordo com Alcorão 24:31, as mulheres podem manter o seu rosto descoberto e também podem manter as suas mãos abertas e usarem anéis nos dedos.
Este versículo também pede às mulheres para cobrirem os seus seios (o que leva a pensar que o não faziam antes, nem que fosse apenas nos momentos de aleitação).
Publiquei há dias, na Internet, imagens do biôco e do rebuço (usados em Olhão e Portimão), trajos parecidos com a burca e bem portugueses.
Proibídos por regulamento policial do Governo Civil de Faro, com execução permanente, aprovado pelo governo, no Artigo 32º que dizia: “É proibido nas ruas e templos de todas as povoações deste distrito o uso dos chamados rebuços ou biôcos de que as mulheres se servem escondendo o rosto”. (Governo Civil de Faro, 28 de Setembro de 1892).
A proibição prendia-se com “a necessidade de identificar quem o usava” (muitas vezes ladrões disfarçados de mulher).
O capote e capelo dos Açores sempre desafiou a imaginação interpretativa
Há uma pergunta curiosa que fazemos, por graça: a quantos metros da praia é que estamos nus se andarmos a passear de fato de banho ou biquíni na terra litoral?
Não é, em suma, o que vestimos – ou o que despimos que constitui a questão. Mas sim como os preconceitos culturais nos despem ou vestem.
Há também um hadith (declarações do Profeta) que o Profeta fez a Asma, irmã da sua esposa Aysha, quando ela apareceu vestindo roupas finas: “Ó Asma, quando a mulher atinge a puberdade não é adequado que qualquer parte do seu corpo seja visto, excepto isto, e ele apontou para o rosto e as mãos.” (Corão 31:30).
Um polícia francês mandar despir uma mulher muçulmana viola um princípio de liberdade religiosa, mas sobretudo de liberdade individual. Se o fizesse com uma mulher não muçulmana, violaria princípio tão ou mais profundos?
Voltarei a este tema, é claro, já para a semana.
Este artigo respeita o AO90