Há um caso concreto que me sugere esta tentativa de reflexão. Toda a gente conhece o Manifesto Anti-Dantas do Almada Negreiros. Todos conhecem a sua exclamação “morra o Dantas, morra, pim!” ou “o Dantas cheira mal da boca” ou ainda “se o Dantas é português, eu quero ser espanhol!”. Enfim, quase toda a gente conhece o Manifesto Anti-Dantas. Fernando Savater, no seu interessante e útil livrinho “A Arte do Ensaio – ensaios sobre a cultura universal”[1] e a propósito de dois compêndios que traçam o perfil da filosofia no século XX escritos por Christian Delacampagne e Remo Bodei (pp. 41-44), lamenta, sem qualquer “vaidade patriótica”, que não haja ali referências a Ortega Y Gasset ou Unamuno e que foram pelo menos tão marcantes quanto outros que surgem nos compêndios, citando os casos de Richard Rorty e Derrida (p. 42).
Por outro lado, Savater refere que em relação a alguns autores, a sua compreensão fica impossibilitada “por três ou quatro fáceis temas de cariz jornalístico que dispensam uma leitura mais atenta dos seus livros” (p. 91). Esta oportuna consideração de Savater vem a propósito do canadiano Marshall McLuhan de quem hoje resta a frase «o meio é a mensagem» e o utilizadíssimo conceito (ou antes, as palavras que o designam) de «aldeia global». E conclui o professor de filosofia basco que “sob esses dois concisos epitáfios, enterrou-se a obra completa de um dos críticos culturais mais inovadores do século XX” (p. 92).
Porquê aqueles e não estes?
Ora, seria possível uma outra história das ideias, com outros nomes que não aqueles que já fazem parte do cânone? Porquê certos nomes que possam ter reconhecida importância e não outros que foram bem recebidos no seu tempo e acabaram, depois, por cair no esquecimento? Porquê aqueles e não estes? É a história das ideias e dos autores não será também vítima de certas anedotas, imprevistos, desencontros?
Há um caso concreto que me sugere esta tentativa de reflexão. Toda a gente conhece o Manifesto Anti-Dantas do Almada Negreiros. Todos conhecem a sua exclamação “morra o Dantas, morra, pim!” ou “o Dantas cheira mal da boca” ou ainda “se o Dantas é português, então eu quero ser espanhol!”. Enfim, quase toda a gente conhece o Manifesto Anti-Dantas. Poucos conhecem o alvo do chiste. Apenas uma minoria conhece o Dantas, o Júlio Dantas (1876-1962). E pior, o que se sabe do Dantas é o que o Almada Negreiros nos disse e nos deixou. E através do ridículo enojado do Almada, construiu-se a imagem do Dantas, manipulando o seu horizonte de receção. E o Dantas ficou-nos através do Almada. O que sabemos do Dantas? O que o Almada disse e insinuou através do Manifesto.
Só que o Júlio Dantas é muito mais do que isso. O Júlio Dantas foi um grande intelectual, médico, político e diplomata, e que até escrevia muito bem, ensaios, romances, peças de teatro. Mas à conta do engraçado texto do Almada, o Dantas ficou, para a maioria de nós, reduzido a um episódio risível, a um motivo de graçola. O que é uma grande injustiça para o Dantas. E haveremos de o resgatar, um destes dias, dos grilhões dessa pilhéria injusta.
Há aqui suposto um problema que se relaciona com a história das ideias e a construção dos cânones. Além, evidentemente, do amor aos livros e à leitura. Ficam, pois, duas sugestões de leitura, uma para a ansiedade canónica e outra para os amantes dos livros. Os primeiros, com muito tempo livre e os segundos, com a sua falta. Assim, para quem tem muito tempo: Harold Bloom, O Cânone Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2011, 588 pp. Para quem tem menos tempo: Jacques Bonnet, Bibliotecas Cheias de Fantasmas, Lisboa, Quetzal, 2010, 164 pp.
[1] Fernando Savater, A Arte do Ensaio – ensaios sobre a cultura universal, Lisboa, Temas e Debates, 2009, 152 pp.