Algumas virão a correr tentar desmentir o que aqui se escreve, esforço que será uma vez mais inútil e sensaborão e que é tão velho como o velho que idolatram.
Aos historiadores falta ainda a distância para contar tudo como tudo se passou: os que morreram à fome, os que morreram nas prisões, os que morreram no exílio, os que morreram em 13 anos de guerra vergonhosa (dos dois lados do confronto). As escolas, têm ainda vergonha de por nos seus livros e compêndios o que se passou no Tarrafal, Peniche ou Caxias, em Moeda, ou nas ordens suicidas que deu às tropas na Índia, em 1961, ordenando que a resistência devia prolongar-se durante pelo menos 8 dias, prazo que estimava suficiente para mobilizar um (inexistente) apoio internacional…
Há, ao mesmo tempo, uma certeza nos historiadores, aquela que Eduardo Lourenço sintetizou – maravilhosamente, como quase sempre o faz – nesta frase brilhante: ”o excesso de passado, vendo bem, não nos garante nada”.
Esse excesso inútil de passado cria distorções. Cultiva lendas e mentiras em torno dos mais nefastos, faz de um ditador um canteiro de saudades. Faço notar, no entanto, que os melhores trabalhos que li sobre o que realmente se passou, são de investigadores tidos como de “direita”, o que nos faz descansar quanto à intenção final do que escreveram. No meu caso, só escrevo isto por causa da ponte que cruza o Tejo. Ao fazer 50 anos, trouxe à baila o pequeno ditador de trazer por casa, que tanto mal nos causou.
Hoje, na China, erguem-se altares a MaoTseTung (ou MaoZedong), a quem a história regista como um dos principais assassinos da História. Conheço romenos que suspiram pelos tempos de Ceausescu, russos saudosos da União Soviética, neonazis que idolatram Hitler, húngaros que suspiram ao falar de MátyásRákosi…e portugueses que evocam Salazar vendo-o como nunca foi.
Os outros, os que estudam a História, ou que a viveram ou que, em pior patamar, a sofreram, sabem que essa iliteracia é funesta e nela radica o gérmen de um retrocesso que pode fazer regressar os tempos dos assassinos, da repressão, da ditadura.
Salazar voltou agora ao chorrilho das asneiras – por causa do aniversário da Ponte sobre o Tejo que, tal como outros progressos, da televisão aos refrigerantes, teve dificuldade em aprovar.
Todavia, sendo a mesma ponte uma subida ao palco de um grande momento cénico do regime, lá se fez em boa ordem. Durante a construção, éramos proibidos de falar especificamente nos operários que morriam durante a obra.
Lembro-me ainda dos recados que a polícia política, a guarda nacional republicana, a polícia de segurança pública e o ministério das obras públicas impunham a todos – e era eu uma criança. (Haverá outros como eu que, em Alcântara ou em Almada, sobretudo, se lembram como eram abordados e coagidos para não contarem nada sobre os acidentes).
Um silêncio entre silêncios
Lembro-me bem das chapas de identificação (tenho uma) dos operários, que as usavam para melhor serem identificados se caíssem. E caíam.
Salazar não era melhor que Mussolini, Hitler, Estaline, Mao ou Franco, só para falar de alguns dos anões da História Universal, nem, por comparação, aquele que matou milhares é mais benigno do que o aniquilou milhões.
E Salazar matou muitos, no Continente e ilhas e nos erros estratégicos de Timor, logo em 1941, e em Angola, a partir de 1961, mas também em São Tomé, na Guiné, em Moçambique, em Portugal continental e ilhas…
Os mais ignorantes, atribuem a essas criaturas de morte os saldos que nunca tiveram. E quem o faz são, no fundo, herdeiros daqueles que permitiram de uma ou outra forma que detivessem o poder nas suas épocas. A Lei das Cinco Espigas de Estaline não é muito diferente da criação da PVDE, da PIDE ou da DGS, do lápis azul da censura ou do campo do Tarrafal.
O nosso ditadorzinho foi um “homem” de pouca virilidade que exerceu a força como todos os homens de pouca virilidade (praticando a violência doméstica no seu semelhante). Que fez negócios estranhos, como os do fornecimento do material de guerra à Junta de Burgos durante a guerra civil espanhola (material produzido por Portugal e algum que, como intermediário, trazia da América e da Europa, facilitando créditos para o financiamento das operações dos nacionalistas, denunciando ainda às forças de Burgos a chegadas dos navios com proveniência do México, com abastecimentos para as forças republicanas), com os negócios de armas a partir dos anos 60 ou o alugar e depois a tentativa de vender Angola aos alemães durante a Segunda Guerra (os negócios com o volfrâmio não chegavam para os seus objetivos e como o menino com o porquinho mealheiro queria aumentar o “seu” pecúlio dourado).
A América também quis comprar os mesmos territórios. António Oliveira Salazar rejeitou uma proposta dos Estados Unidos para a independência das ex-colónias portuguesas a troco de mil milhões de dólares (782 milhões de euros). Há pormenores recente divulgados sobre a tramóia, no livro “EngagingAfrica: Washington andtheFallofPortugal’s Colonial Empire”.
Mau pagador, ficava sempre com a melhor parte – pois parece que nos inesperados negócios com a EFTA (European Free Trade Association) e a OECE (Organização Europeia de Cooperação Económica), mais tarde, mostrou a mesma habilidade.
Uma extraordinária política de propaganda, repressiva, criou-lhe a lenda.
Que era de boas contas, bom administrador e bom gestor do País. O povo não tinha pão, nem roupa, nem calçado.
Mas o trigo, o milho, as conservas, o volfrâmio e outros materiais para alimentar o esforço de guerra ( de Espanha, NAZI, ou colonial) . Fingia respeitar a Aliança Luso-Britânica, e estava apenas do seu lado. Criou uma hierarquia de famílias, poupando-lhes o castigo dos escândalos (do consumo de drogas, da pedofilia, das orgias sexuais), mas ia à missa (em capelas privadas de amigos).
Há gente que hoje diz que má e corrupta é a Democracia, sem perceber uma linha da história que lhe tiraram da frente, escondendo-a em parte incerta… O tipo até foi considerado o Grande Português, num programa de entretenimento de uma Tv nacional.
Dirão: mas tínhamos os cofres cheios – à moda de Maria Luís Albuquerque, Vítor Gaspar e o pobre Paulo!
A Segunda Guerra permitiu-lhe ganhos inesperados – e o seu embotamento de visão limitou-o a contas de merceeiro que não quer mais do que um negócio de bairro. A inflaçãofez com que esta descesse a valores confortáveis de 28% do PIB em 1941 (quando em 1926, à data do golpe de Estado militar, a dívida externa portuguesa era de 75% do PIB).
Sem que Salazar fizesse NADA por isso, em 1933, a dívida externa portuguesa caiu quase para metade em virtude da eliminação da dívida da I Guerra ao Reino Unido (por a Alemanha ter denunciado o Tratado de Versalhes).
Em 1940, devido à II Guerra Mundial ( e ao rearmamento da Alemanha e dos aliados) Portugal aumentou muito as exportações (com o volfrâmio), melhorando a balança de transacções – o que permitiu a conversão de mais de 2/3 da dívida externa em dívida interna consolidada.
Em 1955 a WorldSurvey ofEducation da Unesco colocava Portugal no último lugar da Europa em termos de alfabetização. Salazar para reforçar os cofres, dera cabo do ensino.
Entre 1961 e 1974 rebentou com milhões em esforço de guerra… Mandou matar, prender, reprimir, calar, empobrecer povos que andavam descalços, famintos e que nem o nome sabiam compor (o que ainda hoje se nota de forma dolorosa).
E todavia, há quem não se esforce a perceber o mal que nos fez. A boa administração era tanta que os que não estavam presos morriam de fome ou emigravam. A elite económica, claro, era exceção à regra e mesmo essa era serôdia e pouco notável.
Salazar foi daquelas presenças que na História mereciam um lugar à parte, um ponto final onde todos os dedos apontados acusassem a dimensão catastrófica do que impediu. Salazar é como aquele primo lá da terra que construiu uma casa de banho e nunca a usou para não a sujar, embora a porcaria o atolasse.
Foi talvez uma das figuras mais sinistras e hediondas do século XX, e não só da História de Portugal, mas da Universal. De uma burrice confrangedora. Ainda hoje, a economia se ri dele. Como o campeão da inutilidade. É que o, felizmente já falecido, ditador português, segundo consta, foi responsável pela “maior reserva de ouro da Europa”. Fala-se de mais de 600 toneladas inúteis aprisionadas em 24 anos (volfrâmio, atum enlatado, armas, fortunas não devolvidas a vítimas da Segunda Guerra, negócios nunca bem estudados com “aliados” e colonizadores…muita coisa ainda do Brasil e sobretudo de África, onde a morte saiu à rua durante séculos).
Há pouco tempo, as reservas de ouro que equivalem a 6,8% do PIB português, não impediam a Standard &Poor’s de atribuir a segunda pior classificação de crédito da Zona Euro a Portugal. Terão sido mais úteis, essas reservas, após a revolução de 1974, quando o país chegou a ser um dos mais pobres da Europa Ocidental, do que em toda uma vida de cofres e mofo.
É que nesse período, o Banco de Portugal podia criar moeda, o que não é agora o caso. A lei diz que os ganhos de alienação de ativos têm de ser colocados numa reserva e pagam dividendos em função dos resultados com juros e ativos. Assim, o esforço de empobrecer o País ao longo de décadas foi para lá de inútil. A economia “não olha” para as reservas de ouro, quando avalia a qualidade de crédito da República.
As reservas serão hoje pouco menos de 400 toneladas de ouro, que estarão avaliadas em menos de 7% do PIB. Já as reservas da Alemanha serão de 4,2% do PIB, as de Itália equivalerão a 4,8% e as da Grécia serão iguais a 1,4%. As nossas cheiram a mortos e a sangue, a um povo pobre e traído, e sobretudo cheiram às mãos sujas do homem das botas de elástico. Hoje, o ouro “é um ativo como qualquer outro. É uma questão de gestão de carteira”.O homenzinho de Santa Comba, que fez uma tese medíocre em economia sobre Agricultura (em 1916, título Questão Cerealífera: o Trigo), merecia uma ponte…para a eternidade e sem retorno.
Até o nosso azeite – o nosso ouro líquido – vale bastante mais que as suas sangrentas reservas.O azeite, pelo menos, tem uma capacidade rara: traz a verdade à tona.
Este texto respeita as regras do AO90.