A forma de a Europa deixar de ser um joguete da China ou de qualquer outra potência depende de si e da capacidade de construir no mundo uma aliança assente não em interesses conjecturais mas antes em valores e visões do mundo comuns.
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Quatro décadas que mudaram o mundo
O encerramento definitivo da época de terror conhecida por “Revolução Cultural”, com a prisão do famoso “bando dos quatro” e a ascensão no poder de Deng Xiaoping, marca o início do processo de afirmação chinesa no mundo, que assinala este ano as suas quatro décadas.
Olhando retrospectivamente, creio ter-se tratado de uma mudança com maior impacto do que a da queda do império soviético de que grande parte das consequências foram hoje revertidas pelo neossovietismo de Putin.
A China foi nos milénios passados um dos principais focos civilizacionais, apenas secundarizado no século XVIII pela revolução industrial europeia, atravessando nos séculos XIX e XX crises sucessivas. Desde 1949, a China afirmou-se de novo como império, e adaptou a ideologia comunista ao sistema de mandarinato de que foi pioneira, mas foi ainda vítima do despotismo maoista que provocou enormes desastres humanos e estratégicos.
As grelhas de leitura ocidentais – as variantes “marxista” e “neoliberal” coincidem no essencial – nunca conseguiram entender o que se passava, equacionando pretensos insanáveis conflitos entre “comunismo” e “capitalismo” e vaticinando consequências sociais e políticas das transformações da “infra-estrutura económica” que nunca se verificaram.
Não creio que o mandarinato comunista chinês tenha descoberto a fórmula social milagrosa que compatibilize eternamente o desenvolvimento do país com a manutenção do apertado controlo da sociedade pela sua nomenclatura, mas precisaria de conhecer melhor a história e a realidade chinesas para me atrever a fazer vaticínios sobre o calendário de eventuais crises.
Para já, o que podemos observar é a vertiginosa ascensão chinesa sobre todos os mecanismos de poder internacionais. Depois da ocupação militar do mar do Sul da China, ignorando o direito marítimo internacional e a risível oposição dos EUA sob a administração Obama; do sucesso do golpe de Estado do Zimbabwe após as veleidades nacionalistas de Grace Mugabe, matéria em que o Reino Unido e a Europa falharam durante um quarto de século; a China afirma-se agora como “patroa” do sistema internacional.
Em Setembro, a China fez desaparecer o presidente da Interpol, revelando semanas depois que o tinha prendido, antes de este “ter pedido a demissão”; perante os EUA, que acordaram agora para o desafio chinês, afirmam que querem defender o “sistema multilateral” contra o egoísmo americano; e perante o mundo inteiro afirmam-se como o maior investidor e construtor de infraestruturas, remetendo para um papel secundário o Ocidente e as suas instituições internacionais.
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A política chinesa para a Europa
Contrariamente à Rússia, a China nunca viu a construção europeia como sua adversária mas como uma estrutura que poderia facilitar a sua dominação. À imagem do que faz em todo o mundo, a China compra a boa vontade da generalidade dos dirigentes políticos, nomeadamente oferecendo-lhes lugares extremamente bem remunerados nas empresas que controla.
A abertura do mercado da União Europeia à indústria ligeira, há um quarto de século, colocou graves problemas a economias europeias periféricas como a portuguesa e a grega, enquanto trazia vantagens acrescidas a economias mais desenvolvidas como a alemã que não eram atingidas pela concorrência e que beneficiavam na exportação de maquinaria e tecnologia.
Hoje a situação é totalmente diversa, com a China a adquirir posições estratégicas em tudo o que sejam infraestruturas de comunicação, em empresas tecnológicas e financeiras e mesmo nas mais emblemáticas, como a Daimler-Benz, o que levou os dirigentes alemães a dinamizar legislação europeia em preparação que pretende introduzir algum controlo nos investimentos chineses.
No seu discurso de “Estado da União” do mês passado, o presidente da Comissão Europeia lamentava-se do facto de a Europa não conseguir criticar a política de direitos humanos chinesa por existir sempre um ou outro Estado europeu pronto a bloquear uma posição europeia a pedido chinês.
Na verdade, a capacidade de influência chinesa nas estruturas europeias vai muito para além disso, tendo conseguido fazer com que a Europa não defendesse em 2016 o direito marítimo internacional, não condenando a ocupação militar do Mar do Sul da China e levando a que as instâncias europeias defendessem a China em numerosas outras situações contra os seus mais óbvios interesses.
A China tornou-se a principal patroa da política externa de vários Estados europeus (dentro e fora da UE), sendo Portugal um dos exemplos mais óbvios, com tendência a agravar-se, perante a secagem das tradicionais fontes de patrocínio político irano-venezuelanas.
Não creio tão-pouco que as recentes iniciativas europeias no domínio do investimento estrangeiro e no domínio da conectividade euro-asiática, anunciadas como formas de responder ao progressivo e incontrolado controlo pela China de mecanismos europeus estratégicos, levem a qualquer alteração de situações.
No absurdo quadro de funcionamento “neoliberal” da concorrência europeia, a Comissão Europeia regula apertadamente a intervenção dos seus Estados nas empresas europeias, mas ninguém regula a intervenção dos outros Estados nessas mesmas empresas. Tudo aponta para que na legislação a aprovar, os investimentos externos sejam controlados pelos Estados membros e não pela Comissão Europeia, o que apenas facilitará a capacidade negocial dos dirigentes de cada Estado europeu, mas não irá alterar a situação de favorecimento da actuação dos Estados não europeus no controlo da economia europeia.
Na iniciativa de conectividade euro-asiática, que supostamente iria responder às famosas rotas da seda, não há qualquer resposta, nem mesmo a compreensão de que se está perante um desafio global, que se trava em todos os continentes e que diz tanto respeito à Europa de Leste como a do Ocidente, onde a China – em Portugal e na Islândia, por exemplo – está a realizar importantes investimentos estratégicos.
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Os desafios europeus
Nestes quarenta anos, nem tudo correu de acordo com as expectativas dos dirigentes chineses, começando pela guerra com o Vietname de 1979 e continuando na actualidade com as recentes derrotas eleitorais dos seus protegidos na Malásia e nas Maldivas (o que já tinha acontecido no Sri Lanka) que pôs em causa o controlo de pontos estratégicos marítimos de grande importância em que as autoridades chinesas tinham investido.
Na verdade, habituados que estamos há décadas a ouvir profecias da desgraça sobre a economia chinesa – por não seguir regras suficientemente ortodoxas – que nunca se materializaram, podemos estar a correr o risco de não tomarmos em conta avisos sérios. Da mesma forma, por muito apertado que seja o controlo da nomenclatura chinesa, não podemos minimizar os efeitos da fome de liberdade que obviamente existe na China como em todo o mundo.
Em qualquer caso penso que o problema da Europa não é a China, é ela mesma. A fraqueza da Europa é a fraqueza das suas instituições e das suas convicções; é o vazio das ideologias que a prendem ao seu passado e a impedem de ver o seu futuro.
A forma de a Europa deixar de ser um joguete da China ou de qualquer outra potência depende de si e da capacidade de construir no mundo uma aliança assente não em interesses conjecturais mas antes em valores e visões do mundo comuns.
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